Quarta-feira, 28 de Setembro de 2016

.Das mães

Não sou especialmente fã de ténis, nem de Nadal. Vi este vídeo por acaso. Acho que quem é mãe consegue perceber aquele desespero - pode durar segundos, horas, mas parece uma eternidade. Não saber de um filho é, provavelmente, das coisas mais horríveis e assustadoras do mundo. Ver aquele abraço entre as duas, mãe e filha, no final, a chorar, mexeu comigo, fez-me chorar também. Compreendi, tão bem, o que se passava ali, no coração das duas. A sorte, tanta sorte, daquelas duas. As promessas, os desejos, os medos ainda ali ao lado. Por acaso também, vi os comentários. E a culpa, para variar, é sempre da mãe. Raio de mundo este em que se culpam as mães por tudo. A mãe - tenho a certeza que não havia outra pessoa que aquela miúda assustada quisesse abraçar naquele momento. As mães não são perfeitas, não fazem tudo bem - mas tentam, todos os dias. Sei disso tão bem.<

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L. às 14:45
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Quarta-feira, 16 de Julho de 2014

.O B'lota

A história da Dona Teresa, da Prima Teresa ou da Tia Teresa*, os vários nomes pelos quais responde, quase se confunde com a da Casa Silva, onde a podem encontrar quase todos os dias. Chegou ali aos 30 anos, mas, quando já se chegou aos 77 anos - nasceu a 5 de Março de 1937, parece uma vida. Terceira de quatro filhos de Francisco J. F. e Isaura D. F., nasceu no Monte de Pau, perto das C., onde viveu até casar. A irmã mais nova faleceu aos 30 meses, de meningite, o mais velho, Jaime, faleceu recentemente, resta-lhe ainda a irmã M. I.. A escola foi feita nas C., onde chegava a pé, e as boas notas, principalmente a matemática, fizeram com que o professor a quisesse passar logo para o 3º ano. O pai não deixou. A cabeça boa dura até hoje – sabe um sem fim de números de telefone de cor e salteado e faz muitas contas de cabeça enquanto vende pão. Depois da 3ª classe o pai quis que estudasse para ser professora, mas ter de ir para longe da família fê-la desistir – não era como agora, não havia autocarros nem tantas facilidades. Ajudava em casa e trabalhou no campo, numa herdade em Malhadas do Meio, onde os pais faziam searas. O marido, Francisco C. da Silva P., conheceu-o num baptizado, da Emília do Gaudêncio, onde foram os dois padrinhos. Ela ficou-lhe debaixo de olho, e pouco depois, num bailarico, pediu-a em namoro. Juntaram-se depois de 3 anos de namoro, porque esperavam o primeiro filho, J. M., e casaram já com a presença dele, com 6 meses. A parteira não deu conta do recado, tiveram de chamar o Dr. Virgílio, de L., e o bebé nasceu com a cabeça tão espalmada que o marido achou que ia ficar defeituoso, mas o Dr. conseguiu metê-la no sítio. O segundo filho, C. M., nasceu cerca de 16 meses depois, e o médico já só teve de ajudar no final. A loja ficou-lhes de herança – já os sogros a tinham quando o marido nasceu. Ele ainda chegou a andar em Évora, a tirar o curso de Farmácia, mas desistiu por estar longe da família. Entre os sete irmãos, foi o último a tirar o papel – ficou com a loja. Se não tivesse calhado assim, já tinham pensado em emigrar. Aos 30 anos, apareceu um caroço na cara do marido que acabou por lhes marcar a vida. O médico da terra julgou que era por causa da saliva, mas enganou-se. Tratava-se de um tumor que o levou a cerca de 10 operações, a quimioterapia, a uma vida cheia de sofrimento, que terminou há 18 anos. O último pedido que lhe fez foi cumprido, faleceu em casa, junto aos dois filhos. Continuou a trabalhar na loja e, para aliviar o cansaço e as dores (chegou a ajudar o marido a carregar sacas de 80kg), começou a ir passar férias todos os anos com os netos, para a Curia, onde a sua mãe ia tratar as pedras nos rins. Começaram a ir no ano em que a neta mais nova nasceu, a M., já ela fez 16 anos. Aos netos F., L. e A., juntaram-se já os namorados das netas, e este ano há-de ir também o mais novo membro da família, a bisneta Aurora. São férias com muitas gargalhadas, birras e ralhetes da avó, mas passam o ano a contar os dias para voltar ao sítio onde os conhecem por “a avó e os netinhos”, por ser a única que consegue levar para lá tanta gente jovem. Gosta de fazer renda, caminhadas com as amigas, fazer compras e passear. Lamenta não ter tirado a carta, ela que decora tão bem os caminhos, mas o marido achou que não era necessário, toda a gente tinha na família. Hoje acha que lhe dava muito jeito. Mas foi de avião que conheceu o sítio de que mais gostou, os Açores, e onde vai voltar este ano. Não se deita sem se agachar e espreitar debaixo da cama, hábito que ganhou com a avó Rita, que espreitava até o sótão antes de ir para a cama. Aos 77 anos, continua a trabalhar todos os dias, desde cedo, na loja. Mexe na nova caixa registadora, que achou que nunca ia conseguir, e continua a subir o escadote para chegar às prateleiras mais altas. A última vez que subiu acabou por descer da pior forma, e valeu-lhe umas nódoas negras, um galo, uma costela partida e liquido no pulmão. Não faz mal, enquanto conseguir quer continuar a trabalhar, que a loja, de que o marido gostava tanto e ela não, ao início, até lhe dá vida. E Setembro e a Curia estão quase a chegar, para poder então descansar.

 

(*Eu tenho a sorte de lhe poder chamar avó Teresa)

Segunda-feira, 3 de Fevereiro de 2014

.Nas nossas mãos

Sou um bocadinho pessimista e sofro muito por antecipação. E, infelizmente, isto não se muda - eu, pelo menos, não consigo mudar, faz parte de mim. Por curiosidade, no outro dia estivemos a ler as características do signo da rapariga, e fiquei logo triste só por dizerem que ela vai ganhar asas cedo e passar meses sem ligar aos pais. Se tudo correr bem, temos uma vida pela frente, e também está nas nossas mãos, espero, fazer com que seja diferente. Mas eu sou assim, e as hormonas também não ajudam nada, e lá fiquei deprimida. Sou pessimista e sofro por antecipação, pois é, mas depois, no fundo, sou como todas as outras pessoas - acredito, ou quero muito acreditar, que há coisas que só acontecem aos outros e que nunca nos hão-de tocar a nós. Depois vem aquela coisa a que chamamos vida e prega-nos rasteiras, e devíamos aprender qualquer coisa com elas, mas isso nem sempre acontece. Desde que sou mãe tudo me toca muito mais profundamente - um episódio de uma série com um bebé abandonado dá para quase uma hora de choro, fotos de crianças subnutridas ou doentes acabam comigo, notícias de crianças desaparecidas, mortas e outras coisas más deixam-me sem vontade de viver neste mundo. Mas depois olho para a minha pequenita, para a minha família, e fico cheia de vontade de viver, de fazer coisas, de mudar tudo aquilo que estiver ao meu alcance. Sim, porque se há coisas que não estão nas nossas mãos e temos de aceitá-las como chegam até nós, outras dependem apenas da nossa vontade, da nossa coragem, de nós. E era sobre uma destas coisas que eu queria escrever hoje - uma para a qual todos nós podemos contribuir. O Vitor faz parte da minha vida há pouco tempo, mas tem um papel fundamental. É ele que ilumina o coração e alimenta o sorriso, como ninguém conseguiu alguma vez fazer, de uma das pessoas da minha vida, a Tania. O Vitor está doente e, infelizmente, pode ficar ainda mais. A parte boa desta história, sem contar com o amor todo que eles sentem, é que nós podemos contribuir para a saúde e felicidade do Vitor. Como? Fazendo com que seja possível ele viajar até à Alemanha para fazer o tratamento adequado ao tumor dele. Menos um pastel de nata, um café, uma cerveja nas nossas vidas, pode ser mais um euro de esperança para o Vitor. E não deixa de ser também uma dose de esperança para todos nós - quantas vezes podemos dizer que está nas nossas mãos mudar o mundo de alguém? A verdade é que as coisas más não acontecem só aos outros - acontecem aos nossos, acontecem-nos a nós. E quando esse dia chegar vamos querer que nos ajudem também, que mudem o nosso mundo também. Que reencaminhem o nosso pedido de ajuda, que partilhem o nosso apelo, que contribuam com um cêntimo que seja. Acredito que a vida compensa as boas acções. Vamos fazer uma já hoje?
Está tudo aqui: https://www.facebook.com/avitoria.dovitor
L. às 12:24
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Sexta-feira, 15 de Março de 2013

.Dos Outros

Frases de outros onde me encontro:

 

“A verdade é que nunca disciplina foi tão importante para mim e nunca ela me ajudou tanto. Quando parece que há coisas demais a fazer, ainda assim elas são feitas, e de repente não era nada tão grave, e me vejo contente por ter dado cabo de mais uma pilha de afazeres e sei que nesse tempo que restou posso relaxar de verdade, sem me preocupar, (…). Aprendi a duras penas que procrastinação é a pior coisa do mundo. E ainda que às vezes eu seja acusada de não saber gerir meu tempo, pois não consigo largar tudo e ir dormir quando os outros acham que eu deveria, acho que é justamente o contrário: eu priorizo sempre o que PRECISA ser feito em detrimento do que eu QUERO fazer. Uma vez feito tudo aquilo que precisa ser feito, todo o tempo restante é dedicado ao que eu quero. E uma vez que as tarefas que precisam ser feitas são incorporadas na sua rotina, uma vez que você tenha disciplina para sempre priorizá-las, elas deixam de ser um fardo, pois você elimina a escolha, o dilema entre fazê-las agora ou depois. A resposta é sempre: faça agora, tire da frente, não deixe para depois. (…) Mato tudo o que é tarefa de rotina o mais cedo possível no meu dia, (…). Lutar contra as coisas que você precisa fazer, aprendi, é a maior fonte de stress de todas, e totalmente evitável. Para que tudo funcione bem, (…), planejamento é sempre essencial.”

Ana Elisa G. Granziera

Blog http://www.lacucinetta.com.br/

 

 

"Devia haver

um curso, workshop, tutorial, vídeo no youtube, instruções, alguma coisa - qualquer coisa - que nos ensinasse a gerir expectativas."

outros dias

Blog http://outrosdias.blogs.sapo.pt/

 

L. às 14:20
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Quinta-feira, 3 de Janeiro de 2013

.O B'lota

Não foi uma escolha própria, mas antes a vida, o que fez Gui. Mat. morar nas Cor.. O dinheiro não era muito, o trabalho do marido nem sempre estava certo, e não queriam pedir ajuda. Ficaram então com o terreno que lhes calhou de herança depois da morte do pai, e deixaram para trás a terra que os viu crescer, Sa. do Mato. Foi lá que nasceu, a 14 de Novembro de 1925, apesar de só ter sido registada a 16 de Dezembro. Filha de J. Mat. da Silva, das Cort., e de Dom. R. Var., de Moiteiro, foi a quinta filha de seis, não tendo já consigo nenhum dos irmãos. Cedo saiu da escola, depois de terminar a 3ª classe, para ajudar na mercearia e taberna dos pais, com os irmãos. Era tão pequenina, ainda hoje é, que o pai teve de mandar fazer um estrado para conseguir chegar ao balcão e assim vender copos de vinho. Foi lá que aprendeu a jogar às cartas, os homens chegavam do trabalho e queriam um parceiro para jogar, ela estava no sítio certo. Este ano, quando foi fazer exames ao coração, conseguiu arrancar umas gargalhadas ao médico quando este lhe perguntou se tinha fumado ou bebido, e ela lhe confessou que não, mas que vendeu muitas coisas dessas. Daquilo que gostava mesmo, e que o pai nunca a proibiu de comer, era de doces. Diz que é talvez por isso que hoje já não tem os dentes todos. Na Páscoa, as amêndoas chegavam numa saca de pano, e era a ela que cabia fazer os cartuchos em papel pardo e dividir em doses individuais para depois vender. Os bocadinhos de açúcar colorido que ficavam no fundo eram todos para ela. Teria uns 9 ou 10 anos. Foi lá, na loja, que ouviu o pai ralhar a sério depois de ter ‘roubado’ tecido a um senhor que lá foi comprar riscado para fazer umas ceroulas. Quando se apercebeu que aquele bocado não chegava, ele que tinha ido comprar com todas as medidas, foi reclamar. O pai ficou tão envergonhado que deu uma nova peça ao senhor, e o primeiro ficou para a mãe fazer panos. Com o ralhete veio a lição: só se ‘rouba’ um bocadinho quando já se tem habilidade, e a alguém que compre muitos metros. Foi criada na fartura, mas não na riqueza. Enquanto na casa do marido se dividia uma sardinha por três, e eram 12 irmãos, na sua sempre teve uma só para si. Conheceu Manuel J. G. na terra, e namoraram 10 anos. Deseja que toda a gente tenha um casamento feliz como o deles, que durou 48 anos e só a doença conseguiu terminar. Faleceu há quase 11 anos, depois do terceiro enfarte. Os médicos explicaram-lhe que ninguém sobrevive a três. Ficou-lhe a fazer muita falta, era a sua companhia. Foi depois de casar que voltou à escola, para fazer a 4ª classe. Queriam comprar um carro, e, como o marido não sabia ler nem escrever, coube-lhe a ela tirar a carta. Foi a primeira mulher a fazê-lo em Sa. do Mato. Conseguia ir sozinha até Cor., mas tinha medo de conduzir, principalmente quando se cruzava com camiões de cortiça. Depois de saber que precisava de fazer um exame para renová-la, deixou-se disso. O marido utilizava a motorizada, e não havia semana em que não fosse pelo menos duas vezes a Sa. do Mato, de onde saiu contrariado. Era de lá que lhe trazia um pão guloso, que ela gostava de comer com melancia, com uvas ou com azeitonas. Foi sempre assim, a gostar mais de comer coisas ruins do que boas. E quando o médico lhe tentou tirar o pão, disse logo que seria morte certa. Ficou autorizada a comer o equivalente a uma carcaça, ela que come umas três. Quando casou engordou cerca de 30 quilos, e o sogro até lhe inventou um nome. Não levou a mal, mas começou uma dieta que a obrigava a comer bananas em jejum e uns comprimidos cujo nome já não lembra. Hoje não chega aos 50. Adora bolo de mel, e costuma encomendar na loja Silva a enxovalhada delas, que é boa, rende muito, e tem um sabor parecido. É para ela e para a Rosa, que lhe faz companhia lá em casa, dia e noite, há já quase 13 meses. Já teve seis senhoras consigo, que foram saindo pelos mais variados motivos, até que a Rosa, que também já lá tinha estado, voltou. A sobrinha do marido, a Car., também costuma ir ajudá-la a tomar banho, e leva-a a todas as consultas, que são muitas. Os hospitais e os médicos fazem parte da sua vida. Tem diabetes, colite húmida, e já fez uma grande operação, em que tirou parte do intestino, por ter cancro, um rim e um quisto. Correu tudo bem, mas no regresso a casa caiu, no quarto, partiu a cabeça, e teve de voltar ao hospital. O médico já lhe tinha dito que não era como as outras pessoas, por não querer sair do hospital. Explicou-lhe que era por não ter ninguém à espera. Os filhos não fizeram parte dos seus planos, e quando pensaram nisso já era tarde. Deus esteve sempre na sua vida. Chegou a limpar a igreja de Sa. do Mato, e depois a das Cort., mas acabou por se chatear com o senhor padre, porque gosta de dizer o que pensa. Apesar de já não poder ir à missa, não gostou da alteração do horário, e diz que, mesmo que pudesse, talvez não voltasse lá. Sempre que pode, vê-a na televisão, vê as procissões da janela, e reza duas vezes por dia o terço, uma pela paz, outra pelos seus pecados. E, ao domingo, o J. Cân. dá-lhe a hóstia a casa. Espera que Deus a leve para o bem e não para o mal. E que, quando chegar a sua hora, seja o padre C. Fontes a fazer o funeral. No outro dia soube que ele estava longe, mas ele sossegou-a — ”Não se preocupe, quando chegar a hora, ligue-me, que eu vou”.

Segunda-feira, 10 de Dezembro de 2012

.Era bom*

Conheci-o como conheci tantas outras pessoas por aqui, sem saber bem como. Começa-se com um sorriso, um bom dia, e depois já não passamos sem dois dedos de conversa. Conheci-o no trabalho, e se tantas coisas nos separavam, havia uma forte a unir-nos, a terra. O meu Alentejo ficava a poucos minutos do dele, e era tema de conversa tantas vezes. Isso e os meus ralhetes, pelo tanto que fumava. Todos os dias, antes das 09:30, trazia os jornais para que pudéssemos fazer a revista de imprensa. Se tivéssemos cartas para mandar ou encomendas para levantar não havia problema, que a volta fazia-se por lá. E à sexta-feira, quando entrava com o meu nome na ponta dos lábios, adivinhava-lhe já os planos: era ida certa à terra. Chegámos a encontrar-nos por lá, mesmo sem fazermos por isso. Era dia de ano novo, e chovia tanto. Levei a avó a conhecer uma prima nova e reparei num senhor de guarda-chuva na passadeira, sem que ninguém o deixasse passar, ali em frente à minha antiga escola. Reconheci-lhe o passo, era o senhor V., e só os apitos dos carros de trás não nos deixaram desejar festas felizes com mais vagar. Outras vezes encontrámo-nos no comboio, entre festas – era dia de greve, a bilheteira estava fechada, e o revisor não teve tempo de chegar até nós para comprarmos bilhete. Não me lembro da falta de uma palavra, de um gesto, de uma atenção, para comigo. E ainda que possa ter achado que no trabalho muitas coisas poderiam ser diferentes, quem sou eu para julgar alguém que, provavelmente, só se adaptou àquilo que foi colhendo ao longo dos tempos? Conversámos pela última vez numa sexta-feira. Ia para a terra da sua Maria, seguiam-se as férias, e seria tempo da apanha da azeitona. Não voltei a vê-lo. Estranhava já a sua longa ausência quando a fiz notar a um dos motoristas, mais próximos do senhor V.. Que não estava bem, quando estranhou a velocidade a que perdeu peso foi ao médico e os exames mostraram o que mais temiam, um tumor, nem sei bem onde, nem isso importa, que todos são maus. Tinha sido internado no IPO nesse mesmo fim de semana. Pensei em visitá-lo, meti nota no telemóvel, sem saber se isso seria possível, um plano como tantos outros, cheio de boas intenções. Não houve tempo – bastou um fim de semana sem que estivesse de serviço e sem consultar o email para que o sr. com nome de cidade se apagasse, e todas as cerimónias passassem ao meu lado. E depois chorei, claro que sim. Como não chorar por alguém com quem partilhamos muito mais tempo, muitas mais conversas, do que, tantas vezes, com a nossa família e amigos? Pergunto-me se chegará o dia em que deixarei de pensar que ele entrará mais uma vez na nossa sala sempre que batem à porta para entregar os jornais. Haverá dia em que faça a revista de imprensa sem que deixe o Público mais de lado porque era o jornal que o sr. V. levava para ler ao almoço ou sem tentar adivinhar qual das notícias ia ele comentar nesse momento? Na nossa última conversa falámos da crise, do senhor primeiro ministro, dos cortes, de tantas coisas más que vinham por aí e nos iam mudar a vida. E depois, sem que nos tivessem avisado, chegaram outras coisas más, e levaram a vida, e tudo aquilo deixou de preocupar, de fazer sentido. Oxalá o sr. V. também tivesse ficado sem subsídio de férias, também sofresse os cortes já em janeiro, mas continuasse a trazer-nos todos os dias os jornais, para logo de seguida nos ouvir a ralhar por ter acabado de fumar mais um cigarro. Era bom.

 

*Não gosto do acordo ortográfico, mas estou cansada de resistir em alguns sítios quando em quase 80% do meu dia últil tenho de o usar. Ainda estou a aprender a 'escrever', mas acredito que com o tempo isto vai ao sítio. Este é o primeiro post desta nova fase.

Quinta-feira, 8 de Novembro de 2012

.O B'lota

Escrever no B’lota é uma coisa que me dá mesmo muito prazer, ainda que não tenha muito tempo e já não esteja tantas vezes quanto gostaria na terrinha. As entrevistas levam-me um par de horas, o difícil é conseguir estar lá. Chovia mesmo, mesmo muito no dia em que fui fazer a última. Atravessei a ponte, depois de sair do trabalho, e cheguei ao meu Alentejo com o vidro um bocadinho descido – que ninguém saiba disto, mas, como não sobe nem desce no botão, o Z. arranjou uma forma de o prender e, quando descai, basta puxá-lo com as mãos. Perfeito para ladrões. O meu carro não tem andado com muita sorte. Primeiro foi a junta da cabeça que rachou, depois foi o vidro do lado do condutor que deixou de funcionar e agora partiram-lhe o espelho também do lado do condutor (tenho um lá colado, que aumenta tudo). Mas o meu carro é o melhor do mundo, e juntos vamos a todo o lado. Estacionei debaixo de um sobreiro, perto do portão do sr. Luís E., e vi que tinha uma faixa molhada nas calças. Da exacta medida do espaço que o vidro desceu. Estava a tentar puxá-lo, à chuva, quando parou um senhor perto de mim a perguntar se precisava de ajuda. Tive noção de que tinha chegado à minha terra nesse exacto momento. Foi uma entrevista boa como todas as outras. De segredos, de desabafos, de gargalhadas. E de lágrimas. Que começaram a cair já no final, quando o sr. Luís E. pegou no acordeão e começou a tocar o vira de La., que dancei com o meu rancho em tantos palcos, tantas vezes tocado por aquelas mesmas mãos. Depois ainda houve tempo para ver os avós e jantar com os pais. Depressa, que o Z. esqueceu-se da chave de casa logo nesse dia. O pai ajudou-me a prender, uma vez mais, o vidro, mas, uns cinco minutos depois de partir, começou a baixar. Tentei puxá-lo do lado de dentro mas só piorei tudo – acabou por descer todo, com um grande barulho. Não parei no meio do nada para o puxar por medo, e assim fui eu, da minha terra à minha casa, com o vidro completamente aberto. Uma hora e pouco de viagem com o vento na cara, o ar condicionado no máximo para aquecer o possível, uns salpicos de água para refrescar e a música no máximo. Há muito tempo que não me lembrava do que era ir sozinha ao meu Alentejo. Quer dizer, tive companhia – o melhor carro do mundo. Com ou sem vidro. E resultou nisto:

 

Basta pegar num instrumento, qualquer um, para começar a procurar as notas. São conhecidos os dotes para tocar acordeão, mas diz ser capaz de fazer música até num raio de uma bicicleta. Luís E. C. nasceu a 6 de Setembro de 1932, nos Foros da Palhota, e cedo se dedicou à música. Devia ter uns 4 ou 5 anos quando aprendeu a tocar, sozinho, num harmónio comprado pelo irmão. Este não conseguiu aprender, mas também não deixava ninguém mexer nele, e foi às escondidas que lhe ganhou o gosto. Nessa altura não havia condições para aprender música como há agora, e quem queria tinha de aprender por si. Deixou a escola no 3º ano e foi ajudar os pais, E. C. e M. C., a guardar porcos. Foi aí que ganhou um gosto que ainda hoje tem, o de fazer pequenos pífaros, que o ajudavam a passar o tempo e não o deixavam ficar longe da música muito tempo. Foi depois para os Montes Frades, arrancar moitas, mas acabou por se desentender com um rapaz que o acusou de lhe roubar uma navalha. A discussão levou-o a procurar trabalho no Vale da Lama, no arroz, onde ficou por 12 anos. Fazia de tudo um pouco, semear e cuidar até estar criado, mexer no trator e até apanhar cortiça. Conheceu a esposa, Cu., no trabalho. Era filha do patrão para onde começou depois a fazer mondas de arroz, em Alcoentre. A sociedade unia o sogro e outro senhor da terra, e levava as pessoas dali até onde fossem precisas durante o tempo necessário, não distinguiam dias da semana e fins-de-semana. Não foi, logo ao início, um namoro abençoado. Escreveu-lhe uma carta onde lhe pedia em namoro e ela aceitou, mas ouviu ralhar do pai, que conhecia a sua fama de namoradeiro. Mas foi à Cu.que disse ‘sim’, depois de um namoro de cinco anos, a 1 de Novembro de 1958. Comprou a primeira concertina a um homem que lá apareceu no trabalho e lhe disse “tem jeito, não perca tempo”. Foi pagando aos poucos com aquilo que ia ganhando. Fazia bailes um bocadinho por todo o lado, o primeiro foi na Carregoceira, e chegava a ganhar 250$ por actuação. Corridinhos e valsas, alturas houve em que tocava dia e noite. Começou a tocar também em ranchos, o primeiro foi o de Lavre. O padre Flausino ia buscá-lo a casa, num carro onde chovia lá dentro, e levava-o para os ensaios. Tocou nos ranchos da Glória, da Azervadinha, do Bairro da Areia, da Fajarda, do Rebocho, de Vendas Novas, da Erra, de Foros de Vale Figueira, de Santana do Mato, e, claro, no da terra, onde esteve quase sempre. Chegou a tocar em quatro ranchos ao mesmo tempo e vezes houve em que se juntaram todos em palco – mudava o rancho, o tocador era o mesmo. Foi no regresso de um ensaio, de Vendas Novas, que apanhou um grande susto. Despistou-se na motorizada, caiu para fora da estrada, e aí esteve inconsciente até que uma carrinha de cortiça viu o sangue e o encontrou. Ainda tem as marcas. Trabalhou como servente, mas as doenças não ajudaram, por três vezes teve de ser operado aos olhos. Esteve quatro anos a fazer aquilo que aparecia, até que decidiu vender cautelas, em 62. Primeiro andava por vários sítios, mas depois acabou por se fixar na zona de Coruche, gostou daquilo. Chegou a usar o boné com estrelas, tantas quantos os prémios que tinha dado. Por seis vezes vendeu a sorte grande, o tão desejado 1º prémio da lotaria. Se todos lhe tivessem pago, teria terminado o ofício muito melhor, mas muitos aproveitaram-se da sua boa vontade e foram deixando o nome, até hoje, na lista das dívidas. Quando a filha nasceu era o que andava a fazer, a vender jogo, e por lá teve de ficar. Só a pôde conhecer no dia seguinte, a roda andava nesse dia, e já não podia ir a Lisboa devolver o que tinha comprado. Foi ela que o obrigou a parar de vender, numa altura em que a mãe adoeceu, há cerca de três anos. Não tivesse sido assim e teria ficado muito pior, reconhece agora. A filha, Ma., chegou quando a mulher tinha 39 anos, depois de muito repouso e dieta, porque até aí não tinham conseguido. Às vezes, quando estão os dois adoentados, ela chega a levar-lhes comida, de Évora, de propósito. É uma boa filha, e têm pena de a começar a maçar tão cedo, mas, afinal, foi ela que chegou mais tarde. Numa das idas a Coruche apanhou outro grande susto. Nesse dia resolveu deixar a motorizada em casa, para não correr o risco de ter um acidente, mas o destino trocou-lhe as voltas. Mesmo estando a regressar à aldeia de carro com as professoras Maria Irene e Maria Prates, acabou por ter um e partir as duas rótulas dos joelhos. Nunca pensou chegar aos 80 anos, confessa, com todas aventuras que teve e partidas que o coração também lhe pregou. Mas chegou. Agora, gosta de cuidar da horta, de fazer e tocar pífaros, de tocar concertina e outros instrumentos no rancho. Gostava de ter aprendido música com um mestre, porque sempre tocou sem ter noção de tudo. Agora há muitos professores, mas antigamente não era assim. Ainda aprendeu por correspondência, e diz ter valido a pena. Não conseguiu passar a paixão ao neto, Fi., mas nem assim deixa de o ajudar nos sonhos dele – se prefere tocar bateria, arranja-lhe uns paus e uns alguidares virados ao contrário. Uma paixão que há-de durar para sempre e que não consegue ter de lado muito tempo. A concertina está sempre ali ao lado, faz parte dele, do Luis E.. Ainda não lhe toca e já os seus dedos vão tamborilando. E depois, quando a agarra, é aquilo que todos conhecemos tão bem. São as músicas com as quais crescemos que nos invadem, tocadas pelas mãos do homem que nos fez conhecê-las também.

 

L. às 15:23
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.O B'lota

Percebi agora que não deixei este por aqui:

 

Foi no passado dia 3 de Junho que soprou 88 velas, mas continua a ser conhecida como a menina El. Coelha. Nasceu nas Co., na casa onde morava o Zé Maltesinho, em 1924, filha de pai e mãe cortiçadenses, S. Coelho e M. E. Barroso. Diz que era uma criança má, irrequieta, que não parava. E são muitas as histórias de que se lembra para o provar. Como aquela em que a avisaram mais do que uma vez para não mexer nos alfinetes e ela resolveu fugir com eles para um buraco no meio da lenha. As horas passaram e ninguém sabia da El. – gritaram, correram, viram poços, mas dela nem sinal. Tinha os alfinetes, tudo o resto podia esperar. Foi o padrinho, grande amigo, que viu o seu gorro vermelho escondido, e a livrou de umas palmadas, dessa vez e em tantas outras. Negociava madeira nas feiras e trazia-lhe sempre um boneco de recordação, mas tinham de lho esconder, porque era estragadona. Explicavam-lhe que era a cegonha que os levava, e passou a detestá-las. A elas e ao senhor que andava a vender agulhas e linhas pela aldeia, e que a avó lhe jurara levar as meninas que se portavam mal em caixotes. Bastava ouvi-lo lá fora para não sair de casa. Lembra os tempos de folia, na escola, com saudade, a mesma que sente dos ensinamentos da professora Bá., irmã do Deusdado, que a acompanhou até ao final da 4ª classe. Depois das aulas veio a costura, que aprendeu com a vizinha Domingas. Era dispensada uma vez por mês para ajudar na casa da professora, que lhe deixava as coisas que precisavam das suas mãos num saco branco: passajava, cosia botões, fazia tudo o que era preciso. Guarda ainda, da juventude, a amizade da Cla. e da Maria D.. Era juntas que davam o passeio de domingo pela aldeia, que viam os pretendentes passar à janela, que faziam bailes improvisados, ao som da concertina do Deusdado, no quintal da Ma.. Começou a namorar aos 19 anos e casou aos 21, também com um homem da terra, J.M. da Silva. Aproveitou uma ida dela à janela, em casa da professora, num domingo de Páscoa, para a pedir em namoro. Ficava por lá de vez em quando, para lhe fazer companhia, porque o marido dela dava aulas em La.. Deixou a costura, que já tinha muito por fazer em casa - em seis anos teve quatro filhos, a Cu., a M. Si., o Zé e o M. J., e costurava para eles. Casou na aldeia porque o marido não quis ir a La., e o almoço, feito pela tia El., reuniu apenas os mais próximos. Na casa onde vive há 45 anos ainda estão os móveis que o marido fez, o chão que ele assentou, os barrotes que inventou para o tecto. Era serrador de profissão, trabalhador da serração da terra. Com o marido veio também o cunhado, que acabou por ficar em casa deles mesmo depois da morte do marido, há 8 anos, e que por ali montou uma sapataria. Por ali ficou até falecer, há 3 anos, pouco depois de partir uma perna.

É uma pessoa informada. Comenta a política e os assuntos do dia com um conhecimento raro de encontrar numa pessoa com a sua idade, e tem opinião para tudo. Defende a continuação da freguesia onde nasceu, em detrimento das vizinhas, porque até tem industria e dá emprego a tanta gente. Justifica-se com as notícias que vê, com os livros que leu. Os netos, o N. P., o Dr. Z. L. foram-lhe emprestando livros, que a ajudaram a conhecer muitos sítios, e até o Sr. Santana, da Bibliomóvel, lhe trazia já alguns de parte. Agora também teve de deixar a leitura, que os braços já não ajudam, desde que partiu um há seis anos, depois de alimentar as galinhas. Mas não foi há muito tempo que leu “Equador”, “Rio das Flores” ou o “Código da Vinci”, e até gosta de os ver depois adaptados à televisão, que os mostra mesmo como os imaginou. Já não tem força nas pernas, que a doença linfática foi-lha tirando aos poucos, mas usa a cadeira de rodas para ir até à rua, ao peal, quando o bom tempo permite, com a filha e as vizinhas, ou para dar uma voltinha maior. Queria uma como a do Estanque, mas só arranjou uma das mais ruins. Enquanto pôde correu tudo – conhece Portugal de uma ponta a outra, em excursões que fazia com o marido. Lembra-se de cada sítio com pormenor, de cada história com certeza, de cada detalhe com lucidez. Poderia escrever um livro com todas estas memórias. Vibra com histórias e gentes de outros países, e conta ao detalhe as viagens que os netos fizeram, que viveram por ela. No frigorífico mantém alinhada a colecção dos ímanes que lhe trouxeram de outras paragens, Barcelona, Croácia, Madeira. Lamenta não conhecer este arquipélago, mas fala como se já lá tivesse estado. A idade tem-lhe tirado algumas das coisas de que mais gosta, o picô, os sacos de retalhos, mas ainda a deixa conversar. Que venha o tempo bom, o sol, o calor da noite, que venham muitas noites mais, de vizinhos, de amigos, de conversa, de peal. É ruim, a cadeira, mas que seja. Enquanto as quatro rodas funcionarem, e houver vontade para empurrar, há-de haver sempre mais uma conversa para ter. Mais um passeio para dar. Mais uma história para contar.

 

L. às 15:00
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Quinta-feira, 6 de Setembro de 2012

.O B'lota

Foi na casa onde é hoje a loja da Fi. que nasceu, a 28 de Maio de 1923, Fi. Si., o segundo filho mais velho dos oito que tiveram os seus pais. Foi o princípio de uma vida que “dava para escrever um romance”. Gostou da escola, onde andou até à 4ª classe, ali era só “meninice, nada de velhice”. Ainda perdeu um ano, não porque se portava mal, apenas porque calhou mal. Como prenda pelo final da aprendizagem recebeu um cavalo e uma charrua para lavrar a terra. Foi apenas o começo da sua dedicação aos trabalhos agrícolas, que o acompanharam até à reforma. Casou a 12 de Março de 1949, em Lavre, com Ant. Gal., que conheceu ainda na escola. O namoro começou mais tarde, na monda, entre uma e outra “catrapiscadela”. Tiveram duas filhas, A. M. e M. O., que já faleceu, três netos, N., Al. e A., e dois bisnetos, M. e Fi.. Depois de trabalhar por conta dos pais esteve 10 anos na Casa Bragança, daí seguiu para a zona da Messejana, no Baixo Alentejo, tendo depois regressado à primeira Casa. Começou o trabalho por conta própria na Pita Mariça, onde esteve 4 anos. Foi uma seara “muito mal calhada”, que deu prejuízo. Passou depois pela Herdade Bem Calado, pela Quinta de Sousa, pela Pato, e ainda parou em Campo Maior, onde fazia searas de arroz e tomate. Quando chegou o 25 de Abril foi despedido, e estreou-se numa nova área, a construção civil, com o Ant. Si.. Cinco anos depois voltou à agricultura, em Elvas, como encarregado agrícola. Ficou por lá dez anos, com a esposa e o neto N., que viveu com os avós desde os 6 aos 28 anos, altura em que casou. Só depois regressou de vez às Cor., onde continuou a trabalhar por conta própria e a dedicar-se à sua horta. As doenças foram-lhe passando ao lado até aos 83 anos, altura em que resolveram aparecer todas. Primeiro foi um rim que quis parar e o obrigou a ficar oito dias no hospital, depois teve de ser operado à próstata e mais tarde voltou a entrar numa sala de operações, por causa das cataratas. A 5 de Novembro de 2011 uma queda da cama deixou-o com uma perna partida e levou-o a mais uma operação e a um mês no hospital. Pouco depois deu entrada numa Unidade em Mora para fazer fisioterapia durante três meses. Foi neste período que a esposa faleceu, vítima de doença de que padecia há já dez anos. A fisioterapia fazia bem ao corpo e à alma – fez amigos, jogou cartas pelos 20 anos que não tinha jogado, meteram-no a cozinhar e fazer actividades que não se imaginava a fazer, como mexer no computador. No diário que foi fazendo com as suas descobertas em frente a um ecrã de dedos no teclado conta que era o mais velho e o melhor, não deixava nada por fazer, não dizia não a nada. No poema que as animadoras do espaço lhe fizeram na despedida descrevem-no como o mais bem-disposto, e confessam que terão saudades de o ver por lá. Voltou em Março à sua casa, sozinho, “infelizmente”. Conta com a ajuda da filha, “extraordinária”, para ter a casa em ordem, e ocupa o seu tempo entre os jogos de cartas na Associação de Reformados e os livros, que os netos lhe vão trazendo e que também vai buscar à Biblioteca da aldeia. Gosta muito de ler José Rodrigues dos Santos, que não é muito dado a políticas, ao contrário de José Saramago, que não gosta muito por isso mesmo. Costuma ler umas quatro ou cinco horas por dia, e quando apanha o jornal não o larga enquanto não o tiver lido de uma ponta à outra. Sempre gostou de caçar, e foi muito o combustível que gastou atrás dos pombos. Dias houve em que chegou a apanhar mais de 50. Um dos seus grandes sonhos foi cumprido há pouco tempo, pelo neto, queria também ganhar asas. Fez o seu baptismo de voo em Évora, e só teve pena de não ter sobrevoado a sua terra, mas o piloto disse-lhe que o bilhete não dava para isso. Queria ter saltado de paraquedas logo nesse dia, mas não o fez porque a filha não deixou. Tem medo por causa da perna, que sabe ter de manter esticada no momento da aterragem e que não pode voltar a partir ou “lá vai o Fi. para o caixote”, mas faz contas de lá voltar para cumprir mais um sonho. Gostava também de conhecer a Madeira ou os Açores, mas a vida não está para luxos, e já não tem idade para ir sozinho. Quer ainda aprender a mexer bem no computador, e já pediu ajuda aos netos para isso. É mais um passo para acompanhar o crescimento da M., que ainda “é um botãozinho de rosa à espera de abrir”, e o Fi., “inteligente como o pai mas que precisa de campo para arrebitar”. Os planos para hoje já estão traçados, passar pelo café para ler o jornal, jogar às cartas com os amigos, e ler “A Guerra de África”, que já vai a meio. Amanhã talvez faça o mesmo, enquanto espera “o que está para vir”.

Sábado, 23 de Junho de 2012

.Escrever

Primeiro não escrevia com medo do que podia sair, agora acho que perdi a vontade. Lá vou encontrando, em alguns dias, um assunto ou outro que me faz escrever, imediatamente, um texto na minha cabeça. Mas depois o trabalho, a casa, as minhas pessoas, as correrias, que por aqui continuam, tiram-me o tempo e a vontade de as passar para aqui. E nem na minha agenda, companheira de tantos anos, de tanta vida, registo já aquilo que vou fazendo. Não é um motivo mau, o contrário - escrever sem viver, seria bem pior. 
Tinha de entregar ontem o artigo para o B'lota e pensei que o faria muito antes do tempo, já que consegui entrevistar a Sra. E. há umas duas semanas. Mas a nota "ecrever o artigo" manteve-se no telemóvel até ontem. E, mesmo ontem, fui ficando no trabalho até bem tarde, levei o Z. a jantar fora porque não queria perder tempo a cozinhar, aproveitei os saldos sem pressa, e quando me sentei, finalmente, para começar a escrever, até os programas que mais odeio na televisão me prendiam a atenção. Mas assim que comecei a ler tudo aquilo que escrevi na entrevista deu-me um grande arrependimento, como se estivesse a ser injusta com aquela pessoa e até comigo mesma. Uma senhora de 88 anos que terminou de ler há pouco tempo o "Equador" ou o "Código da Vinci", que o maior mal que vê em estar numa cadeira de rodas é não poder viajar, que levou a minha mãe a conhecer a praia do Meco quando ela tinha uns 9 anos, que se recorda de mim bem pequena a roubar o miolo das carcaças com o dedo mindinho, merecia mais atenção e respeito. Até porque, como aconteceu também com todos os outros entrevistados, foram horas de conversa, uma história que não cabe, nem metade, na folha que me é destinada, e merece um bom resumo. Até agora, todos os que leram a sua própria história, nas minhas palavras, me confessaram que choraram a ler. E isso, por estranho que pareça, deixa-me feliz. Que bom é conhecê-los assim, que bom é reconhecerem-se nas minhas palavras. Desliguei a televisão e escrevi o artigo em meia hora. E soube bem. Talvez tenha mentido lá em cima. Afinal a vontade ainda anda por aqui. 
L. às 10:18
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