Segunda-feira, 10 de Dezembro de 2012

.Era bom*

Conheci-o como conheci tantas outras pessoas por aqui, sem saber bem como. Começa-se com um sorriso, um bom dia, e depois já não passamos sem dois dedos de conversa. Conheci-o no trabalho, e se tantas coisas nos separavam, havia uma forte a unir-nos, a terra. O meu Alentejo ficava a poucos minutos do dele, e era tema de conversa tantas vezes. Isso e os meus ralhetes, pelo tanto que fumava. Todos os dias, antes das 09:30, trazia os jornais para que pudéssemos fazer a revista de imprensa. Se tivéssemos cartas para mandar ou encomendas para levantar não havia problema, que a volta fazia-se por lá. E à sexta-feira, quando entrava com o meu nome na ponta dos lábios, adivinhava-lhe já os planos: era ida certa à terra. Chegámos a encontrar-nos por lá, mesmo sem fazermos por isso. Era dia de ano novo, e chovia tanto. Levei a avó a conhecer uma prima nova e reparei num senhor de guarda-chuva na passadeira, sem que ninguém o deixasse passar, ali em frente à minha antiga escola. Reconheci-lhe o passo, era o senhor V., e só os apitos dos carros de trás não nos deixaram desejar festas felizes com mais vagar. Outras vezes encontrámo-nos no comboio, entre festas – era dia de greve, a bilheteira estava fechada, e o revisor não teve tempo de chegar até nós para comprarmos bilhete. Não me lembro da falta de uma palavra, de um gesto, de uma atenção, para comigo. E ainda que possa ter achado que no trabalho muitas coisas poderiam ser diferentes, quem sou eu para julgar alguém que, provavelmente, só se adaptou àquilo que foi colhendo ao longo dos tempos? Conversámos pela última vez numa sexta-feira. Ia para a terra da sua Maria, seguiam-se as férias, e seria tempo da apanha da azeitona. Não voltei a vê-lo. Estranhava já a sua longa ausência quando a fiz notar a um dos motoristas, mais próximos do senhor V.. Que não estava bem, quando estranhou a velocidade a que perdeu peso foi ao médico e os exames mostraram o que mais temiam, um tumor, nem sei bem onde, nem isso importa, que todos são maus. Tinha sido internado no IPO nesse mesmo fim de semana. Pensei em visitá-lo, meti nota no telemóvel, sem saber se isso seria possível, um plano como tantos outros, cheio de boas intenções. Não houve tempo – bastou um fim de semana sem que estivesse de serviço e sem consultar o email para que o sr. com nome de cidade se apagasse, e todas as cerimónias passassem ao meu lado. E depois chorei, claro que sim. Como não chorar por alguém com quem partilhamos muito mais tempo, muitas mais conversas, do que, tantas vezes, com a nossa família e amigos? Pergunto-me se chegará o dia em que deixarei de pensar que ele entrará mais uma vez na nossa sala sempre que batem à porta para entregar os jornais. Haverá dia em que faça a revista de imprensa sem que deixe o Público mais de lado porque era o jornal que o sr. V. levava para ler ao almoço ou sem tentar adivinhar qual das notícias ia ele comentar nesse momento? Na nossa última conversa falámos da crise, do senhor primeiro ministro, dos cortes, de tantas coisas más que vinham por aí e nos iam mudar a vida. E depois, sem que nos tivessem avisado, chegaram outras coisas más, e levaram a vida, e tudo aquilo deixou de preocupar, de fazer sentido. Oxalá o sr. V. também tivesse ficado sem subsídio de férias, também sofresse os cortes já em janeiro, mas continuasse a trazer-nos todos os dias os jornais, para logo de seguida nos ouvir a ralhar por ter acabado de fumar mais um cigarro. Era bom.

 

*Não gosto do acordo ortográfico, mas estou cansada de resistir em alguns sítios quando em quase 80% do meu dia últil tenho de o usar. Ainda estou a aprender a 'escrever', mas acredito que com o tempo isto vai ao sítio. Este é o primeiro post desta nova fase.

Quinta-feira, 4 de Outubro de 2012

.Nas minhas mãos

Em dias assim, de apertos, resta-me* animar com as palavras de quem não conheço. Dei-lhe apenas uma resposta muito pequenina e simples, entre tantas outras. Penso eu. Às vezes, mesmo sem notarmos, em pequenas escolhas, temos a vida dos outros nas nossas mãos. Fazemos também o papel de Deus. Interpretamos as urgências à nossa medida, tantas vezes sem a verdadeira noção daquilo que se passa. Vendo as coisas assim, talvez tenha já sido má com tanta gente. Mas hoje, ao ler isto, hoje sabe-me bem saber que também está nas minhas mãos fazer alguém feliz.

 

“Não tenho palavras para agradecer a atenção e colaboração, resta-me apenas aplaudir o empenho, e a capacidade de resposta atempadamente. O meu muito obrigado, tenham a certeza que um dia eu serei testemunho de que existem pessoas bondosas, capacitadas e qualificadas, motivo pelo qual sinto orgulho dessa equipa que de outro lado está a fazer um excelente trabalho.

Boa noite, continuação de uma boa semana e muita saúde e felicidades na vida,

X”

 

*Mentira. Também houve coisas boas: piquenique na relva com as amigas ao almoço, acompanhar a mana à primeira entrevista pós-curso e saber que posso sempre contar com o Z..

Estou:
Quarta-feira, 12 de Setembro de 2012

.Solidariedade ["Por um emprego e um futuro digno"]

Sei que, na minha vida profissional, com altos e baixos, com experiências melhores e outras piores, as coisas, mais do que resultado de uma luta minha, têm-me acontecido, têm-me aparecido. Saía de um sítio para, logo depois, começar noutro, sem estar muito tempo parada. E, ainda assim, tentei sempre fazer mais que uma coisa ao mesmo tempo. Estou aqui, neste sítio que ainda chamo novo, já há quase cinco anos, e cada vez mais penso que não será por muito mais tempo. Não que alguém o tenha dito, mas será um passo natural. Não sendo funcionária pública, o patrão é o mesmo, e será muito mais fácil cortar por aqui. Sei que não terei problemas em procurar trabalho em qualquer sítio - no primeiro Verão em que estive no banco preparava-me para me dedicar à apanha do tomate, mas sinto-me triste. É um aperto que começa como um pontinho no peito, e depois quase sufoca. Como se a vontade, os sonhos, os desejos que me levaram a fazer todo este percurso não sirvam para nada afinal. Como se o esforço, o estudo, as notas, a dedicação, ..., fossem completamente desprovidos de sentido. Como se nunca acertássemos no caminho, ou não existisse um caminho para nós sequer. É o sofrimento por antecipação, a tristeza pela falta de horizontes. E a solidariedade por quem ainda está, ou já está, numa fase bem pior. Boa sorte, José. Para ti, para todos, para mim também.

 

Notícia publicada hoje no Jornal Público

L. às 11:10
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Quarta-feira, 27 de Junho de 2012

.Dia de festa

Na segunda-feira houve festa aqui no estaminé onde trabalho. E, entre todas as outras tarefas que nos couberam, a mim e às minhas colegas de departamento, fiquei também responsável por registar o momento. Tirar fotografias é uma coisa de que gosto mesmo, e, mais do que apanhar os momentos da praxe – a chegada, os discursos, a plateia, gosto mesmo é de apanhar as pessoas desprevenidas. Tirei mais de 200, e mesmo assim acabei por deixar algumas pessoas de fora. Os pedidos de envio começaram a chegar de todos os lados e tentei responder a todos. Hoje, quando me cruzei com uma das pessoas a quem enviei, ela estava a dar-me os parabéns, que estavam muito giras, quando fomos interrompidos por um colega que, apesar de ser novo por aqui, já me viu umas dezenas de vezes. “Ah, foi a menina que nos tirou as fotos? Nem a reconheci. Quanta elegância naquele dia!”. O que um rímel e um lápis no olho não fazem… Elogios à parte, a grande questão é: venho assim tão mal arranjada nos outros dias…?

L. às 19:04
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Quarta-feira, 15 de Fevereiro de 2012

.Beja

Os meus pais nunca me deixaram trabalhar em tempo de estudo. “Dedica-te à escola, é o teu trabalho”, diziam-me. Durante as férias a conversa era outra, e já estava mentalizada com um Verão a apanhar tomate para conseguir uns trocos quando a minha tia me falou de uma bolsa de Verão para familiares e amigos dos funcionários do Santander. Inscrevi-me sem grande esperança, e acabei com a réstia que tinha no dia das provas: era a mais nova, a única de calças de ganga, a estudar jornalismo e foi um dia com muitas peripécias. Avisaram-nos logo que não escolhêssemos Lisboa, o melhor seria ponderarmos opções no interior, e eu escolhi todos os balcões nas redondezas da minha terrinha. Ligaram-me quando eu regressava a Lisboa, vinda do Porto, num alfa que não me deixava ouvir grande coisa. Beja era opção? Soltei uma gargalhada, as minhas provas tinham sido assim tão más? Pelo contrário, explicaram-me, tinha até tido a melhor nota, mas nenhum dos balcões que eu mencionei tinha aberto vagas. Liguei para os pais, como faço quase sempre na hora de tomar decisões, mesmo as simples, como comprar um móvel vermelho. E, claro, foi a mãe que se lembrou da casa da G., que estudava em Beja e não estaria lá no Verão. Mudei-me para Beja durante três meses. Para uma casa desconhecida, para um trabalho do qual não sabia nada, sem conhecer uma única pessoa. Os exames ainda não tinham terminado, e teria de fazer muitas caminhadas até Lisboa. As minhas roupas não se adequavam ao tipo de trabalho, teria de renovar o guarda-roupa. Ainda não tinha carro, e tinha de me sujeitar às boleias e aos transportes. Sem problema, eu havia de conseguir. E aqueles três meses em Beja foram realmente bons. Aprendi tanto, conheci gente tão boa, cresci mais do que esperava. As colegas de casa fizeram-me sentir realmente em casa, os colegas do trabalho fizeram-me sentir em família, a família e os amigos de sempre esforçaram-se para que eu não sentisse a distância, e a cidade passou a ser minha também. Nem os 40º, nem os dias sozinha em casa, nem os kms percorridos, nem os clientes mal-educados me fizeram ir abaixo. Tinha os dois meninos da caixa sempre a animarem-me, a D. M. que vinha para fazer a limpeza e nos comprava sempre gelados, o menino das tintas para me dizer como estava bonita, o sr. L. para me levar aos melhores restaurantes, e sei lá. Foi tão bom. Na segunda, quando anunciaram no jornal, à noite, o triplo homicídio em Beja, não pude deixar de ficar angustiada e de tentar saber tudo sobre o que se tinha passado. Conhecia o senhor, pois conhecia. O desfalque tão falado foi no banco onde trabalhei, e tantas vezes ouvi aquela história. Passei tantas vezes na loja da família naqueles dias em que não tinha mais nada para fazer para além do trabalho. E foi em Beja, na minha cidade, com as minhas pessoas.

Raramente comento coisas da actualidade aqui neste cantinho. Tenho opinião, pois tenho, mas gosto de guardá-la para mim. Prefiro contar as minhas coisas, e não expressar alegria ou tristeza, aprovação ou desprezo perante as coisas dos outros. Prefiro não julgar ninguém, porque nunca sei aquilo que a vida me pode trazer. Mas hoje preciso de dizer que estou triste, que custa, que não percebo, que a maldade humana não tem limites. Que por mais séries que veja onde tenha de tapar os olhos nenhuma chega aos calcanhares da realidade. Que leio todas as notícias que saem nos jornais e penso: “mas aquela família não teve nada de bom”? Que tenho vontade de voltar lá, ver as minhas pessoas, e partilhar um bocadinho da dor que os atingiu a todos. Sei que não posso fazer nada. Às vezes não tenho sequer poder para mudar o meu mundo, quanto mais o dos outros. A maldade faz-nos perceber a nossa pequenez, insignificância. Hoje vou ligar às minhas pessoas, de Beja, a dizer isto mesmo. Somos nada, feitos de pequenos nadas. E eu gostei que eles fizessem parte dos meus. E continuo por aqui.

L. às 14:51
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.Convencida

Hoje recebi isto, e não pude deixar de me sentir bem. Estou ligeiramente convencida, mas já passa.

 

"Já chegou a (…), graças a Deus e a ti que se prontificou em resolver meu problema o mais rápido possível. Obrigada mesmo, de coração! Sei que deve estar a pensar só fiz o meu trabalho. Pense. nem sempre as coisas correm dessa maneira. Há muitos por ai que não fazem nem 1/3, não estão nem aí para os problemas dos outros. Já não mais ocupando o seu tempo, quero lhe dizer que a partir de hoje você vai estar em minhas orações diárias... que Deus lhe dê sabedoria para agir no seu dia a dia, no seu falar, no seu agir, que Deus coloque palavras sábias na sua boca, na sua escrita, no seu pensar. Que Deus lhe dê muita saúde e que esteja sempre lhe guiando para o bem. São pessoas como você que fazem o país crescer, você sabe fazer a diferença, não é só mais uma soma."

L. às 14:49
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Sexta-feira, 9 de Dezembro de 2011

.Pessoas

Fui jornalista durante pouco tempo – nem carteira cheguei a pedir, mas deu para perceber uma coisa: se pudesse, escrevia apenas sobre pessoas. Lembro-me de uma vez, enquanto estava a trabalhar nas revistas dos barcos, ter ido entrevistar um casal português que vivia num barco com os dois filhos menores, os únicos portugueses que já tinham dado a volta ao mundo de barco por duas vezes. Adorei conhecê-los, conhecer aquelas histórias que nunca me atreveria a viver. Escrevi um artigo que achei, modéstia à parte, realmente bom. Os colegas que leram gostaram bastante e o pai do meu chefe da altura, um senhor exigente que nos corrigia os artigos, chegou a ligar-me para elogiar a escrita, o encadear das histórias – disse-me que tinha sido um dos melhores artigos que já lera sobre o assunto. O pior foi quando o chefe me chamou à sala para falarmos sobre o artigo e rasgou as folhas à minha frente. Afinal, o que era aquela porcaria? Os leitores queriam saber que avarias enfrentaram, como tinha reagido o barco, como funcionaram as velas, e coisas assim. Saber como tinham aulas os miúdos? Quem eram os amigos? Como se encontravam? Como se passavam 24 horas num barco sem se cansar? Isso não interessava para ninguém. E lá voltei eu a Cascais, à conversa com eles, para poder então escrever o artigo que interessava ao meu chefe e aos leitores da revista, mas não a mim. Talvez tenha sido nesse dia que percebi que nunca ia chegar longe no jornalismo – moldei o artigo a mim, àquilo de que gostava – as pessoas, quando, afinal, não era isso que devia ter feito. Mas é possível ser-se jornalista sem deixar uma marca pessoal?

Na minha terra, há já algum tempo, formaram uma associação de jovens. Não faço parte, limito-me a participar em algumas das iniciativas e, ainda que não seja próxima de todas as pessoas que a compõem, tenho muito orgulho delas. Porque, continuando algumas pela terra ou só estando nela ao fim-de-semana, tiveram a coragem de se juntar para lutar por qualquer coisa. Organizam torneios de tudo e mais alguma coisa, fazem festas, passam filmes, reivindicam – e tudo isto me parece muito bem. Não há muito tempo passaram a ter também um jornal e convidaram-me agora para escrever qualquer coisita para lá. Não demorei muito a escolher o tema – pessoas. Cada uma desta aldeia deve ter uma história gira para contar, uma lição para ensinar, um gesto que faça rir. E o melhor é aproveitar agora, enquanto ainda estão cá, e registar e dar a conhecer este património da aldeia.

Para primeira edição escolhi uma pessoa que toda a gente conhece, o senhor M.C.., o jornalista da terra. Não se formou na área, mas poderia muito bem formar gente. É ele que todos os meses escreve as novidades da terra para o jornal do concelho, e nem a doença o impede de continuar a fazê-lo.

Tirei o dia de férias e estou pela minha aldeia. Ontem tive o melhor feriado possível – em casa, com os pais, a mana e os respectivos apêndices, à volta do lume, com comida, jogos e muita  conversa. Agora estou sozinha em casa, a mãe está a trabalhar na loja, o pai foi à lenha com o Z., a mana foi com o namorado a V.N. arranjar os pneus da carrinha do pão que já teve dois furos hoje. Estou a ganhar coragem para sair de casa e ir bater à porta do senhor M.C.. Falamos muito quando nos encontramos por acaso, ele até veio visitar o pai quando foi operado, mas desta vez é diferente. Primeiro porque não entrevisto ninguém há muito tempo, depois porque acho que é sempre melhor que nos contem coisas porque querem e não só porque perguntamos. Vou tomar um banho bem quente, ligar o rádio que tanto orgulho dá ao pai, e começar a pensar no que lhe vou perguntar daqui a instantes. O medo há-de passar quando lá chegar, ou não fosse eu a L. de sempre – quando a conversa começar o difícil vai ser parar. Ou não fosse este o meu tema preferido de todos – pessoas.

Sexta-feira, 2 de Setembro de 2011

.Considerações finais

Já trabalho há alguns anos e o começo foi duro – entre outras coisas más, os recibos verdes só permitiam uma semana de férias por especial favor. Agora, com cerca de um mês para tirar, trato sempre estes dias com muita estima, e faço por dividi-los da melhor forma pelo ano inteiro. Nada de três semanas seguidas (esta modalidade em que nos inseriram só tem mesmo isto de bom), que intervalado é muito melhor. Estive uns dias de férias, por Londres e no Andanças, voltei ao trabalho, depois fui para a Curia, voltei a trabalhar esta semana, e na próxima volto a estar de férias. Já tive passeio, descanso, agora quero Alentejo e praia. Vou aproveitá-los bem, porque as próximas férias são só depois do Natal – vamos conhecer Barcelona. O .se perguntarem por mim digam que voei também vai de férias, para se despedir desta espécie de Verão. Voltamos dentro de uma semana.

 

L. às 14:59
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Quinta-feira, 15 de Julho de 2010

.Pessoas

Se eu tivesse conseguido ser jornalista, era sobre isto que gostava de escrever.

 

"O outro lado do Campeonato do Mundo, o dos rostos que estão por trás do pano

Só há uma perspectiva aérea dos jogos por causa da Spidercam de Peters. Só não há caos nos bastidores por causa de Lucas. Só há um palco para a final porque Bring madrugou dias a fio

Luís Octávio Costa, Joanesburgo

 

Um austríaco que olha para os jogos a partir de cima, um brasileiro que, por momentos, foi o estafeta de Dunga, um sul-africano que ajudou a erguer o Soccer City. São apenas três dos rostos que se escondem nos bastidores da competição. Na África do Sul, o Mundial também são eles.

 

Jens Peters, o inventor

 

"O meu pesadelo é a bola bater na Dolly e entrar na baliza". A Dolly é uma das 30 câmaras que apontam para o relvado do Soccer City. É a mais espectacular, aquela que se encontra suspensa por quatro cabos e que se passeia sobre as cabeças dos jogadores como se de uma nave espacial se tratasse. Não é um OVNI, mas parece.

 

O PÚBLICO encontrou o austríaco Jens Peters, natural de Villach, agarrado aos comandos da sua Spidercam, entretido como se estivesse simplesmente a lançar um papagaio de papel. Há dez anos, este amante do cinema de 8mm viu uma curta-metragem académica com uma perspectiva aérea de um campo de basebol e achou que seria capaz de fazer melhor.

 

Desde 2004 que carrega a casa às costas. "Somos como um circo". A Dolly pesa 2,5 quilos e a carapaça (inspirada nos capacetes dos Storm-troopers, os soldados de Darth Vader espalhados pelo quarto dos filhos) pesa dez vezes mais, sendo parte integrante de um equipamento que atinge os 300 quilos. A estrutura demora um dia e meio a montar e Peters tem no Mundial da África do Sul quatro das suas criações (existem oito, mas a FIFA não quis pagar para ter mais aranhas), manipuladas por três técnicos: o piloto para os movimentos, um operador de câmara e Jens Peters. "Se houver problemas, a culpa é minha".

 

Cumpridos os mais exigentes testes de qualidade alemães, a Spidercam teve que passar no apertado crivo da FIFA, que obriga a que a câmara, que evolui a nove metros por segundo, se mantenha fora da atmosfera do jogo, ou seja, nunca a menos de 20 metros da cabeça dos jogadores (com ordens para não haver tiro à Dolly no aquecimento), e que nunca capte lesões.

 

"Ao todo, emitimos cerca de dois ou três minutos por jogo", conta Jens Peters, que estreou o seu projecto na inauguração do Arena de Munique (passou por Portugal, onde filmou uma final da Taça de Portugal), antes de se lançar em concertos (Kylie Minogue, Robbie Williams, The Police...), hipismo, natação e, a sua especialidade "com liberdade total no espaço", combates de boxe. O seu actor principal é Klitschko, campeão de pesos pesados. Jens Peters sente-se um Scorsese.

 

Lucas da Costa, o voluntário

 

Meteu-se num avião em São Paulo, no Brasil, e saiu em Joanesburgo, na África do Sul. Ficou por ali, junto ao aeroporto, num quarto arrendado. Lucas da Costa, de 23 anos, vai todos os dias para o Mundial "de carona". Tem um pólo verde alface e um kispo verde e amarelo (a farda reinventa o equipamento dos Bafana Bafana) e faz parte da maior equipa do Campeonato do Mundo. "Também são as cores do Brasil", sugere um dos 18 mil voluntários (concorreram cerca de 68 mil) provenientes de 170 países.

 

Ninguém sabe muito bem o que é que eles não fazem. No limite, são os melhores amigos dos jornalistas. São poliglotas e simpáticos. Têm os bilhetes para os jogos organizados por país em pequenas caixas de cartão. Sabem onde está a entrada 545, fila N, lugar 11. Caminham pelas sombras nas conferências de imprensa com o microfone na mão. São os figurantes nos ensaios da entrada das equipas em campo. Descem até às catacumbas da zona mista, onde tentam controlar o caos (desde que Messi quase foi atingido por uma divisória que não resistiu à força bruta da imprensa).

 

"Vale ouro. Além de ver os jogadores de perto, participei na produção do Mundial", sublinha este paulista, em plena pós-graduação em Jornalismo pela FMU. Lucas estava à procura de emprego na Internet e encontrou o anúncio da FIFA. "Estar na Copa... Gostei da ideia". Preencheu o formulário em Julho de 2009 e em Janeiro de 2010 tinha sido aceite depois de uma entrevista. Em Joanesburgo, muda de funções todos os dias. O PÚBLICO recebeu das suas mãos o print com a constituição das equipas para o Brasil-Coreia do Norte. Nesse dia, no Ellis Park, Lucas da Costa era runner, "o primeiro a saber o alinhamento depois do treinador". "Primeiro é o Dunga, depois eu", rejubila.

 

A FIFA não se responsabiliza nem pela viagem nem pela estadia. Paga a cada voluntário 100 rands (cerca de 10 euros) por dia. Lucas, equipamento verde-alface, come pizza e sandes como os outros. E pede boleia numa das cidades mais perigosas do mundo. São Paulo ou Joanesburgo? "Os dois estão brigando".

 

Bring Ndlovo, o construtor

 

A casa de Bring fica na escura 17 Shaft, encostada às antigas minas de ouro do Sowetto. A sua rotina mudou em 2007. Acordava às 5h, meia hora depois apanhava o comboio, às 6h30 chegava ao local de trabalho para às 7h meter mãos à obra. Hoje, a obra está à vista de todo o mundo, chama-se Soccer City, palco da final do Campeonato do Mundo. "Um sítio que recebe diferentes nações, por isso foi especial, muito, muito especial. Tirei fotografias para dizer aos meus netos que fiz parte da história", disse ao PÚBLICO Bring Ndlovo, carpinteiro. "Portas, caixilharias, escadas..."

 

Pelo seu esforço, Bring Ndlovo recebeu 500 rands (cerca de 52 euros) por mês, "mais um bónus semanal se não falhasse nenhum dia". Recebia religiosamente um quarto do salário às 12h de cada sexta-feira. 125 rands. Trabalhava de segunda a sábado. Ao domingo, pensava no dia em que ia receber das mãos da FIFA os dois bilhetes para assistir a jogos do Mundial - estava no contrato dos 54 mil trabalhadores que ajudaram a erguer os estádios na África do Sul.

 

Teve a sorte de ver o África do Sul-México (levou a mulher) e o Gana-Alemanha (foi com a filha). "Ambiente fantástico, não sei explicar", recorda. "Prometi aos meus filhos [seis] levá-los depois". Talvez a um jogo do Kaiser Chiefs, o clube do coração.

 

Bring tem 48 anos e nasceu em Limpompo. Já trabalhava na companhia Grinaker há 10 anos, mas esta foi uma missão especial. "Foi diferente dos outros trabalhos porque tínhamos um prazo apertado, trabalhámos arduamente. A adaptação foi difícil", aponta, recordando os "níveis de segurança muito altos" num estaleiro que contava com uma clínica. "Não queriam que ninguém se magoasse". Bring, o carpinteiro, fez parte da equipa que trabalhou na zona oeste do estádio: "Fizemos tudo, do chão ao tecto"."

* Jornal Público, 10 de Julho 2010

 

Lá fora:

"Metes o teu num altar, e achas que o meu deve andar pelo chão aos pontapés"

"Sim, é verdade"

Quinta-feira, 8 de Julho de 2010

.Santander-Totta

Os meus pais nunca me deixaram trabalhar em tempo de aulas, “dedica-te à escola, agora que é tempo”, diziam-me. Nas férias do primeiro ano de faculdade decidi que queria mesmo trabalhar – ganhar uns trocos, experiência, coisas assim. E podia ser em qualquer lado: na apanha do tomate, na vindima, nas estufas. Queria fazer qualquer coisa. E eles apoiaram-me, por ser nas férias. Na altura o padrinho trabalhava no Santander-Totta (agora a concorrência roubo-o) e eles lançaram uma campanha para os familiares e amigos dos trabalhadores: tem o 11º ano, menos de 25 anos, venha trabalhar connosco. E eu fui à primeira entrevista da minha vida. Era a mais nova, tinha calças de ganga vestidas, e estava rodeada de gente engravatada e sem sorrisos para devolver. Fiz todos os testes, escolhi balcões perto da terrinha e fui embora, a pensar que devia começar a procurar outra coisa para fazer – aquela era uma realidade muito longe da minha. Foi por isso que estranhei quando me telefonaram uns dias depois a propor uma estadia de três meses em Beja. Beja, nunca tinha estado lá a não ser para deixar os companheiros da viagem de finalistas, só tinha visto a cidade de dentro do autocarro. “Mas os meus testes estavam assim tão maus?”, perguntei eu assustada. “Não, estavam muito bons, por isso lhe propomos um sítio que não estava na sua lista, e que também é no Alentejo”. Fiz as malas e mudei-me para um sítio onde não conhecia ninguém durante 3 meses, nas minhas férias de Verão. E foi bom. Fui bem recebida, aprendi um monte de coisas, fiz um monte de amigos e pagaram-me bem. Na altura tinha conta no BES, e a minha praxe, também para aprender como se fazia, foi abrir uma conta para mim. Com ela veio um cartão multibanco, laranja, giro, e que dizia “Jovem” de lado. Durante estes anos todos fui fiel ao Santander, deixei todos os outros bancos para trás. Até porque me voltaram a dar emprego no ano seguinte, em Lisboa, no Parque das Nações (e duas semanas no Marquês de Pombal). E essa foi uma das melhores experiências que tive: fazer caixa, representar o banco em escrituras, assistir a reuniões com malta do dinheiro, acrescentar uma data de contactos ao telemóvel que duram até hoje. E, quando saí da revista de barcos, chamaram-me de novo. Recusei com muitas dúvidas, porque nesse mesmo dia chegou a proposta para o emprego onde continuo até hoje. Mas sempre defendi a camisola deles. Até à semana passada. O meu cartão laranja, que dizia “Jovem”, só era válido até 06/10. Lembro-me do dia em que o recebi e fiz as contas: faltava tanto para aquela data. Mas ela chegou. E com ela um cartão novo. Horrível, vermelho, que não diz “Jovem”. E isto coincidiu com a minha entrada nos 26. E não é bom. Não me tivessem dado 19 anos por duas vezes nestes dois últimos dias e estava capaz de entrar em depressão. Assim talvez mude só de banco. E o Banif do padrinho até tem um cartãozito bem giro da Kitty.  

 

Lá fora:

"Tenho medo do depois, confias demais nas pessoas"

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