Todos os anos era a mesma coisa: chegava o mês de Agosto e com ele a contagem decrescente para as festas da terrinha. As festas e tudo o que elas traziam. A casa cheia de amigos divididos pelo chão do meu quarto e da mana, as pizzas de metro e meio da mãe, as saídas até mais tarde, os meninos bonitos das outras aldeias que nos faziam suspirar por uma dança, a actuação do rancho, os amigos que só lá estão por esta altura do ano, as noites na quermesse a vender rifas. Hoje começam as festas. Não vou levar ninguém comigo, a mãe não vai fazer pizza, já não suspiro por uma dança a não ser nos braços que conheço bem ou por mais umas horas fora de casa, já não danço no rancho nem gasto o meu sorriso a vender rifas. Hoje vou lá estar porque sim. Porque faz parte, porque preciso. Hoje vou estar noutra posição, no palco a apresentar. E, lá de cima, espero conseguir ver tudo o que um dia já vi ali.
A notícia passou de boca em boca rapidamente. Os cartazes afixados nas portas dos cafés e das lojas da terra ganharam forma e fizeram-se saber de uma ponta à outra. Estavam abertas as inscrições para o novo rancho infantil. E eu estive lá, naquele primeiro dia. Ia deixar de estar em frente ao palco a imitar os passos. A desejar vestir aquelas roupas, saber aquelas danças. Ia deixar de voar só pelas mãos do tio M. quando ele me ia buscar para a dança da amizade. Ia aprender a dançar o passo largo e a dar aquele grito, como eles, quando se encontravam a meio do palco. Estive lá. No palco de madeira acabado de estrear. Com o sr. J.L. e o S. a ensinarem-nos os primeiros passos ao som da música que o sr. L.E. ia fazendo sair do acordeão. Salto e bico, 1,2,3, salto e bico, 1,2,3. Ficámos ordenados por tamanhos. O C. era o meu par. Vieram as primeiras músicas. Oliveirinha da Serra, Fado e Picadinho. O medo que eu tinha de deixá-lo agarrar-me. As fardas. A minha de dama antiga, com um toucado que teimavam em chamar rolha. As primeiras saídas. Não muito longe. As primeiras actuações. Depois veio o outro C., depois o P. e depois o primeiro C.. Não há amor como o primeiro, dizem. Crescemos. Assim, juntos. Uns com os outros. Naquelas viagens a sítios remotos. Naquelas danças em palcos que muitas vezes tínhamos de encher só com quatro pares. Naqueles momentos antes de entrar em palco. E lá em cima. Onde éramos grandes como ninguém. Cresci, deixei de gostar de ver o outro rancho, mas a gostar de dançar cada vez mais. Amparada pelos braços do C. depois de tanto rodar na Trigueirinha e pelas nossas gargalhadas na Polca das Mudanças. Passámos a ser nós o rancho adulto. A carregar nos pés a responsabilidade de levar a nossa terra mais além. Corremos e conhecemos o país de lés a lés, gentes de toda a parte, palcos de todas as espécies, comidas de todos os aspectos. Com a vinda para Lisboa as coisas ficaram mais difíceis, mas nunca houve coragem para abandonar. A farda cresceu comigo, e passei a mulher do fazendeiro. Umas vezes dançava, outras apresentava. Explicava que de alentejanos, só tínhamos a alma e o orgulho. Que os apenas quatro quilómetros que nos separam do Ribatejo nos davam a garra e a velocidade para dançarmos a Fúria, e outras que tais. E não resistia a dançar o Passo Largo, voar, desta vez nos braços do C., e gritar lá no meio, em jeito de cumplicidade. Organizámos festivais, quermesses e bailes. Festas e outros arraiais. No palco, no autocarro e noutras terras esquecíamos as coisas que nos separavam e éramos um só. Um grupo, que trocava de roupa ali mesmo em andamento, dançava o "conga, conga" nas ruas por onde passava e funcionava como um só. Conhecemos ensaiadores de todos os tamanhos e feitios. Os simpáticos, os generais. Ríamos com o discurso do Presidente. Dançámos com gente diferente nas Festas do Avante e com as tias das Feiras de Artesanato do Estoril. Apadrinhámos os mais pequeninos cheios de um entusiasmo que também nós já tínhamos conhecido.
No sábado recebi uma mensagem: "Ensaio às 20horas com o ensaiador. Não faltes". A palavra "faltar", ao ensaio ou à saída, há muito que fazia parte do meu vocabulário. Neste Verão, tirei férias para ir a uma actuação de dois dias ao Norte e percebi como o rancho sempre foi importante para mim. As horas de autocarro não demoraram a passar, as roupas não custaram a vestir, as coreografias não estavam esquecidas. Dormimos juntos, rimos juntos, brincámos juntos e dançámos juntos naquele bailarico ao fim da noite.
"M. não vou poder estar presente. No sábado e nos outros dias. Até ao final do mês mudarei de casa, e, se agora já era complicado, depois passará a ser praticamente impossível. Não tenho coragem de dizer "saí" ou "acabou", vejo agora, mais do que nunca, como tudo isto é importante para mim. Se não se importarem, vou aí dar um pezinho de dança sempre que possa. Obrigada por tudo, L.".
E, apesar da minha fraca coragem para o dizer ou admitir, acabou. Chorei, uma vez mais, nesta minha fase sentimentalóide que já se arrasta há algum tempo. É como se, aos poucos, as coisas de que mais gosto ou que, de alguma maneira, me mantêm ligada a essas mesmas coisas, estivessem condenadas a um fim. E dou pelos meus pés a mexerem-se debaixo da mesa. A ganhar vida própria. Salto e bico, 1,2,3, salto e bico, 1, 2, 3. Fecho os olhos e vejo. O meu carrapito onde não cabiam todos os caracóis. Os ganchos com que os tentava prender. As meias pelo joelho, o saiote comprido e os culotes com a fita rosa. A saia de peitilho, a casaquinha com renda branca e a bolsa onde guardava o lenço da despedida e os relógios dos rapazes. "- Qual é esta? Não me lembro. - Agarra-te a mim e deixa andar, vais ver que já te lembras". E voo, uma vez mais, num qualquer palco de madeira, de saia e caracóis pelo ar, sorriso nos lábios e um piscar de olhos para o par de trás.