Quarta-feira, 16 de Julho de 2014

.O B'lota

A história da Dona Teresa, da Prima Teresa ou da Tia Teresa*, os vários nomes pelos quais responde, quase se confunde com a da Casa Silva, onde a podem encontrar quase todos os dias. Chegou ali aos 30 anos, mas, quando já se chegou aos 77 anos - nasceu a 5 de Março de 1937, parece uma vida. Terceira de quatro filhos de Francisco J. F. e Isaura D. F., nasceu no Monte de Pau, perto das C., onde viveu até casar. A irmã mais nova faleceu aos 30 meses, de meningite, o mais velho, Jaime, faleceu recentemente, resta-lhe ainda a irmã M. I.. A escola foi feita nas C., onde chegava a pé, e as boas notas, principalmente a matemática, fizeram com que o professor a quisesse passar logo para o 3º ano. O pai não deixou. A cabeça boa dura até hoje – sabe um sem fim de números de telefone de cor e salteado e faz muitas contas de cabeça enquanto vende pão. Depois da 3ª classe o pai quis que estudasse para ser professora, mas ter de ir para longe da família fê-la desistir – não era como agora, não havia autocarros nem tantas facilidades. Ajudava em casa e trabalhou no campo, numa herdade em Malhadas do Meio, onde os pais faziam searas. O marido, Francisco C. da Silva P., conheceu-o num baptizado, da Emília do Gaudêncio, onde foram os dois padrinhos. Ela ficou-lhe debaixo de olho, e pouco depois, num bailarico, pediu-a em namoro. Juntaram-se depois de 3 anos de namoro, porque esperavam o primeiro filho, J. M., e casaram já com a presença dele, com 6 meses. A parteira não deu conta do recado, tiveram de chamar o Dr. Virgílio, de L., e o bebé nasceu com a cabeça tão espalmada que o marido achou que ia ficar defeituoso, mas o Dr. conseguiu metê-la no sítio. O segundo filho, C. M., nasceu cerca de 16 meses depois, e o médico já só teve de ajudar no final. A loja ficou-lhes de herança – já os sogros a tinham quando o marido nasceu. Ele ainda chegou a andar em Évora, a tirar o curso de Farmácia, mas desistiu por estar longe da família. Entre os sete irmãos, foi o último a tirar o papel – ficou com a loja. Se não tivesse calhado assim, já tinham pensado em emigrar. Aos 30 anos, apareceu um caroço na cara do marido que acabou por lhes marcar a vida. O médico da terra julgou que era por causa da saliva, mas enganou-se. Tratava-se de um tumor que o levou a cerca de 10 operações, a quimioterapia, a uma vida cheia de sofrimento, que terminou há 18 anos. O último pedido que lhe fez foi cumprido, faleceu em casa, junto aos dois filhos. Continuou a trabalhar na loja e, para aliviar o cansaço e as dores (chegou a ajudar o marido a carregar sacas de 80kg), começou a ir passar férias todos os anos com os netos, para a Curia, onde a sua mãe ia tratar as pedras nos rins. Começaram a ir no ano em que a neta mais nova nasceu, a M., já ela fez 16 anos. Aos netos F., L. e A., juntaram-se já os namorados das netas, e este ano há-de ir também o mais novo membro da família, a bisneta Aurora. São férias com muitas gargalhadas, birras e ralhetes da avó, mas passam o ano a contar os dias para voltar ao sítio onde os conhecem por “a avó e os netinhos”, por ser a única que consegue levar para lá tanta gente jovem. Gosta de fazer renda, caminhadas com as amigas, fazer compras e passear. Lamenta não ter tirado a carta, ela que decora tão bem os caminhos, mas o marido achou que não era necessário, toda a gente tinha na família. Hoje acha que lhe dava muito jeito. Mas foi de avião que conheceu o sítio de que mais gostou, os Açores, e onde vai voltar este ano. Não se deita sem se agachar e espreitar debaixo da cama, hábito que ganhou com a avó Rita, que espreitava até o sótão antes de ir para a cama. Aos 77 anos, continua a trabalhar todos os dias, desde cedo, na loja. Mexe na nova caixa registadora, que achou que nunca ia conseguir, e continua a subir o escadote para chegar às prateleiras mais altas. A última vez que subiu acabou por descer da pior forma, e valeu-lhe umas nódoas negras, um galo, uma costela partida e liquido no pulmão. Não faz mal, enquanto conseguir quer continuar a trabalhar, que a loja, de que o marido gostava tanto e ela não, ao início, até lhe dá vida. E Setembro e a Curia estão quase a chegar, para poder então descansar.

 

(*Eu tenho a sorte de lhe poder chamar avó Teresa)

Quinta-feira, 14 de Março de 2013

.O B'lota

Não lhe roubaram tempo nenhum de vida. Chegou a tempo de comer bolo do casamento dos pais. Foi feito numa noite de baile, onde é agora o Monta da Meana. O desejo era tanto, que fizeram logo tudo de uma vez. Nasceu a 27 de Dezembro de 1929, no monte do Palonga, onde o avó materno tinha uma pensão. João A. da S. P. é o mais velho dos oito filhos de F. da S. P. e de C. S. P., primos direitos. Andou à escola nas Cor., numa altura em que havia quatro escolas a funcionar. Morava no monte onde ainda hoje mora e que lhe deu o nome que herdou do pai, e pelo qual todos o conhecem, Casa Nova. O caminho era feito a pé. Depois veio o trabalho. O primeiro foi com o irmão do pai, o tio Deusdado, perto do A. da Mata, com uma parelha pequena. Depois começou a ir às feiras com o pai, onde faziam negócios de gado. Chegou a ter um fato próprio, com jaqueta e botas de elástico, feito pelo J. Leandro, de La.. Ainda era uma criança, e recorda-se de brincar por lá com os filhos dos outros negociantes. Por volta dos 16 anos começou a dedicar-se também à agricultura, e fazia searas para o pai. Era ele também que ia muitas vezes receber o dinheiro que, por muitos motivos, não lhes podiam dar logo quando faziam um qualquer negócio. Foi a trabalhar que viveu algumas situações perigosas, e que podiam ter corrido mal. Como quando caiu do cavalo e acabou por andar alguns metros de rojo. Não se ia ao hospital como agora, e ficou 5 horas na mesa da cozinha, com a cabeça entre as mãos, a recuperar. Ou quando teve de enfrentar uma cheia importante para os lados de Almeirim, numa entrega de bestas em Santarém. Pior do que essa cheia só quando teve de ir entregar uma égua a Mora e precisou de atravessar três ribeiras. Nas primeiras teve a ajuda de cordas, na última pensou que lá ficava. Mesmo no final da ponte, quando o cavalo tinha já as patas da frente em terra firme, as de trás partiram a ponte. Lá se conseguiram equilibrar, mas ficou o susto. Decidiu ali que nunca mais atravessava ribeiras cheias. Teve muitas aventuras, também a trabalhar. Como naquela vez em que foi a Espanha levar uma égua, com o irmão, e só levaram os documentos do carro. O cartão que o dono da égua escrevera para o novo foi o suficiente para os deixar passar a fronteira. Ou naquela em que teve fugir das autoridades de noite, com um porco gordo atado pelas patas, dado por um conhecido com armazéns em Santarém. Eram os tempos do Salazar, da guerra, e não havia muita produção, tudo era racionado e bem-vindo. Ao nascer do sol já estava no A. da Mata, no seu distrito, longe do perigo e com o porco. Teve muitas namoradas, oito. Umas da terra, outras de fora, e sabe o nome de todas. Que não tenha nem mais uma hora de saúde se tudo isto não for verdade. Umas que pareciam sardinhas ardidas, de tão feias, e outras bem bonitas e jeitosas. Chegou a ter duas irmãs interessadas nele, em Évora, que queriam casar com o filho de um negociante, mas explicou-lhes que não podia ser. Se fossem primas, e não corresse bem com uma, podia experimentar com a outra, mas com irmãs nunca. Andou no ‘gandaio’ muito tempo, a correr muitos bailes entre trabalhos, era só “pegar e largar”. Nem as ciganas lhe escapavam. Até que descobriu a Maria R. R., rapariga da terra, que foi encontrar em Almeirim. Foi uma namorada da altura que lhe disse onde ela estava. Trataram do namoro num baile na antiga sede, onde mora o Pa.. Ele estava muito cansado, por causa de um negócio feito em Pegões, mas foi com o irmão. Ela andava a dançar com um primo, que também a queria, mas fez-lhe sinal que a moda seguinte era dele. E ela também. Depois ainda lhe escreveu uma carta, mas a coisa já estava interiorizada. Foi com os patrões dela passar oito dias de férias à Nazaré, com esperança de a ver de fato de banho e poder mexer-lhe na perninha, mas ela não tirou a roupa. Casaram em 1961, num dia de mercado, que o obrigou a fazer quatro viagens. Já estavam todos os convidados à mesa, para saborear o banquete preparado pela Maria R., quando ele chegou. Tiveram dois filhos, com quatro anos de diferença, a Cr. e o Pa.. Tem dois netos do filho, o Da. e a Ta.. Lembra-se de ensinar o Da. a montar quando ele tinha 5 anos. Primeiro foi criticado, depois queriam que ele ensinasse os outros pequenos também. Ensinou-o a trabalhar, com um ancinho e uma forquilha mais pequenos, que davam para o ir acompanhando. Agora já é crescido, e brinca com outras coisas. Têm todas as facilidades, não sabem quanto custa um beijo roubado, às escondidas. Ele também roubou o que podia, mesmo antes de casar, assim já não se estranharam. É um bom marido, apesar de às vezes se chatearem um com outro, diz Maria R.. Os anos foram passando e,  entre tantas coisas boas, as doenças também foram aparecendo, as quedas acontecendo, como a do outro dia, que os obrigou a uma estadia demorada no hospital, e têm de ajudar-se um ao outro. A vida tem sido sempre assim, passada entre bocados bons e outros ruins. E que continue a ser. Não há caminho bom que não tenha outro ruim logo a seguir. E vice versa.       

L. às 23:59
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Quinta-feira, 3 de Janeiro de 2013

.O B'lota

Não foi uma escolha própria, mas antes a vida, o que fez Gui. Mat. morar nas Cor.. O dinheiro não era muito, o trabalho do marido nem sempre estava certo, e não queriam pedir ajuda. Ficaram então com o terreno que lhes calhou de herança depois da morte do pai, e deixaram para trás a terra que os viu crescer, Sa. do Mato. Foi lá que nasceu, a 14 de Novembro de 1925, apesar de só ter sido registada a 16 de Dezembro. Filha de J. Mat. da Silva, das Cort., e de Dom. R. Var., de Moiteiro, foi a quinta filha de seis, não tendo já consigo nenhum dos irmãos. Cedo saiu da escola, depois de terminar a 3ª classe, para ajudar na mercearia e taberna dos pais, com os irmãos. Era tão pequenina, ainda hoje é, que o pai teve de mandar fazer um estrado para conseguir chegar ao balcão e assim vender copos de vinho. Foi lá que aprendeu a jogar às cartas, os homens chegavam do trabalho e queriam um parceiro para jogar, ela estava no sítio certo. Este ano, quando foi fazer exames ao coração, conseguiu arrancar umas gargalhadas ao médico quando este lhe perguntou se tinha fumado ou bebido, e ela lhe confessou que não, mas que vendeu muitas coisas dessas. Daquilo que gostava mesmo, e que o pai nunca a proibiu de comer, era de doces. Diz que é talvez por isso que hoje já não tem os dentes todos. Na Páscoa, as amêndoas chegavam numa saca de pano, e era a ela que cabia fazer os cartuchos em papel pardo e dividir em doses individuais para depois vender. Os bocadinhos de açúcar colorido que ficavam no fundo eram todos para ela. Teria uns 9 ou 10 anos. Foi lá, na loja, que ouviu o pai ralhar a sério depois de ter ‘roubado’ tecido a um senhor que lá foi comprar riscado para fazer umas ceroulas. Quando se apercebeu que aquele bocado não chegava, ele que tinha ido comprar com todas as medidas, foi reclamar. O pai ficou tão envergonhado que deu uma nova peça ao senhor, e o primeiro ficou para a mãe fazer panos. Com o ralhete veio a lição: só se ‘rouba’ um bocadinho quando já se tem habilidade, e a alguém que compre muitos metros. Foi criada na fartura, mas não na riqueza. Enquanto na casa do marido se dividia uma sardinha por três, e eram 12 irmãos, na sua sempre teve uma só para si. Conheceu Manuel J. G. na terra, e namoraram 10 anos. Deseja que toda a gente tenha um casamento feliz como o deles, que durou 48 anos e só a doença conseguiu terminar. Faleceu há quase 11 anos, depois do terceiro enfarte. Os médicos explicaram-lhe que ninguém sobrevive a três. Ficou-lhe a fazer muita falta, era a sua companhia. Foi depois de casar que voltou à escola, para fazer a 4ª classe. Queriam comprar um carro, e, como o marido não sabia ler nem escrever, coube-lhe a ela tirar a carta. Foi a primeira mulher a fazê-lo em Sa. do Mato. Conseguia ir sozinha até Cor., mas tinha medo de conduzir, principalmente quando se cruzava com camiões de cortiça. Depois de saber que precisava de fazer um exame para renová-la, deixou-se disso. O marido utilizava a motorizada, e não havia semana em que não fosse pelo menos duas vezes a Sa. do Mato, de onde saiu contrariado. Era de lá que lhe trazia um pão guloso, que ela gostava de comer com melancia, com uvas ou com azeitonas. Foi sempre assim, a gostar mais de comer coisas ruins do que boas. E quando o médico lhe tentou tirar o pão, disse logo que seria morte certa. Ficou autorizada a comer o equivalente a uma carcaça, ela que come umas três. Quando casou engordou cerca de 30 quilos, e o sogro até lhe inventou um nome. Não levou a mal, mas começou uma dieta que a obrigava a comer bananas em jejum e uns comprimidos cujo nome já não lembra. Hoje não chega aos 50. Adora bolo de mel, e costuma encomendar na loja Silva a enxovalhada delas, que é boa, rende muito, e tem um sabor parecido. É para ela e para a Rosa, que lhe faz companhia lá em casa, dia e noite, há já quase 13 meses. Já teve seis senhoras consigo, que foram saindo pelos mais variados motivos, até que a Rosa, que também já lá tinha estado, voltou. A sobrinha do marido, a Car., também costuma ir ajudá-la a tomar banho, e leva-a a todas as consultas, que são muitas. Os hospitais e os médicos fazem parte da sua vida. Tem diabetes, colite húmida, e já fez uma grande operação, em que tirou parte do intestino, por ter cancro, um rim e um quisto. Correu tudo bem, mas no regresso a casa caiu, no quarto, partiu a cabeça, e teve de voltar ao hospital. O médico já lhe tinha dito que não era como as outras pessoas, por não querer sair do hospital. Explicou-lhe que era por não ter ninguém à espera. Os filhos não fizeram parte dos seus planos, e quando pensaram nisso já era tarde. Deus esteve sempre na sua vida. Chegou a limpar a igreja de Sa. do Mato, e depois a das Cort., mas acabou por se chatear com o senhor padre, porque gosta de dizer o que pensa. Apesar de já não poder ir à missa, não gostou da alteração do horário, e diz que, mesmo que pudesse, talvez não voltasse lá. Sempre que pode, vê-a na televisão, vê as procissões da janela, e reza duas vezes por dia o terço, uma pela paz, outra pelos seus pecados. E, ao domingo, o J. Cân. dá-lhe a hóstia a casa. Espera que Deus a leve para o bem e não para o mal. E que, quando chegar a sua hora, seja o padre C. Fontes a fazer o funeral. No outro dia soube que ele estava longe, mas ele sossegou-a — ”Não se preocupe, quando chegar a hora, ligue-me, que eu vou”.

Quinta-feira, 8 de Novembro de 2012

.O B'lota

Escrever no B’lota é uma coisa que me dá mesmo muito prazer, ainda que não tenha muito tempo e já não esteja tantas vezes quanto gostaria na terrinha. As entrevistas levam-me um par de horas, o difícil é conseguir estar lá. Chovia mesmo, mesmo muito no dia em que fui fazer a última. Atravessei a ponte, depois de sair do trabalho, e cheguei ao meu Alentejo com o vidro um bocadinho descido – que ninguém saiba disto, mas, como não sobe nem desce no botão, o Z. arranjou uma forma de o prender e, quando descai, basta puxá-lo com as mãos. Perfeito para ladrões. O meu carro não tem andado com muita sorte. Primeiro foi a junta da cabeça que rachou, depois foi o vidro do lado do condutor que deixou de funcionar e agora partiram-lhe o espelho também do lado do condutor (tenho um lá colado, que aumenta tudo). Mas o meu carro é o melhor do mundo, e juntos vamos a todo o lado. Estacionei debaixo de um sobreiro, perto do portão do sr. Luís E., e vi que tinha uma faixa molhada nas calças. Da exacta medida do espaço que o vidro desceu. Estava a tentar puxá-lo, à chuva, quando parou um senhor perto de mim a perguntar se precisava de ajuda. Tive noção de que tinha chegado à minha terra nesse exacto momento. Foi uma entrevista boa como todas as outras. De segredos, de desabafos, de gargalhadas. E de lágrimas. Que começaram a cair já no final, quando o sr. Luís E. pegou no acordeão e começou a tocar o vira de La., que dancei com o meu rancho em tantos palcos, tantas vezes tocado por aquelas mesmas mãos. Depois ainda houve tempo para ver os avós e jantar com os pais. Depressa, que o Z. esqueceu-se da chave de casa logo nesse dia. O pai ajudou-me a prender, uma vez mais, o vidro, mas, uns cinco minutos depois de partir, começou a baixar. Tentei puxá-lo do lado de dentro mas só piorei tudo – acabou por descer todo, com um grande barulho. Não parei no meio do nada para o puxar por medo, e assim fui eu, da minha terra à minha casa, com o vidro completamente aberto. Uma hora e pouco de viagem com o vento na cara, o ar condicionado no máximo para aquecer o possível, uns salpicos de água para refrescar e a música no máximo. Há muito tempo que não me lembrava do que era ir sozinha ao meu Alentejo. Quer dizer, tive companhia – o melhor carro do mundo. Com ou sem vidro. E resultou nisto:

 

Basta pegar num instrumento, qualquer um, para começar a procurar as notas. São conhecidos os dotes para tocar acordeão, mas diz ser capaz de fazer música até num raio de uma bicicleta. Luís E. C. nasceu a 6 de Setembro de 1932, nos Foros da Palhota, e cedo se dedicou à música. Devia ter uns 4 ou 5 anos quando aprendeu a tocar, sozinho, num harmónio comprado pelo irmão. Este não conseguiu aprender, mas também não deixava ninguém mexer nele, e foi às escondidas que lhe ganhou o gosto. Nessa altura não havia condições para aprender música como há agora, e quem queria tinha de aprender por si. Deixou a escola no 3º ano e foi ajudar os pais, E. C. e M. C., a guardar porcos. Foi aí que ganhou um gosto que ainda hoje tem, o de fazer pequenos pífaros, que o ajudavam a passar o tempo e não o deixavam ficar longe da música muito tempo. Foi depois para os Montes Frades, arrancar moitas, mas acabou por se desentender com um rapaz que o acusou de lhe roubar uma navalha. A discussão levou-o a procurar trabalho no Vale da Lama, no arroz, onde ficou por 12 anos. Fazia de tudo um pouco, semear e cuidar até estar criado, mexer no trator e até apanhar cortiça. Conheceu a esposa, Cu., no trabalho. Era filha do patrão para onde começou depois a fazer mondas de arroz, em Alcoentre. A sociedade unia o sogro e outro senhor da terra, e levava as pessoas dali até onde fossem precisas durante o tempo necessário, não distinguiam dias da semana e fins-de-semana. Não foi, logo ao início, um namoro abençoado. Escreveu-lhe uma carta onde lhe pedia em namoro e ela aceitou, mas ouviu ralhar do pai, que conhecia a sua fama de namoradeiro. Mas foi à Cu.que disse ‘sim’, depois de um namoro de cinco anos, a 1 de Novembro de 1958. Comprou a primeira concertina a um homem que lá apareceu no trabalho e lhe disse “tem jeito, não perca tempo”. Foi pagando aos poucos com aquilo que ia ganhando. Fazia bailes um bocadinho por todo o lado, o primeiro foi na Carregoceira, e chegava a ganhar 250$ por actuação. Corridinhos e valsas, alturas houve em que tocava dia e noite. Começou a tocar também em ranchos, o primeiro foi o de Lavre. O padre Flausino ia buscá-lo a casa, num carro onde chovia lá dentro, e levava-o para os ensaios. Tocou nos ranchos da Glória, da Azervadinha, do Bairro da Areia, da Fajarda, do Rebocho, de Vendas Novas, da Erra, de Foros de Vale Figueira, de Santana do Mato, e, claro, no da terra, onde esteve quase sempre. Chegou a tocar em quatro ranchos ao mesmo tempo e vezes houve em que se juntaram todos em palco – mudava o rancho, o tocador era o mesmo. Foi no regresso de um ensaio, de Vendas Novas, que apanhou um grande susto. Despistou-se na motorizada, caiu para fora da estrada, e aí esteve inconsciente até que uma carrinha de cortiça viu o sangue e o encontrou. Ainda tem as marcas. Trabalhou como servente, mas as doenças não ajudaram, por três vezes teve de ser operado aos olhos. Esteve quatro anos a fazer aquilo que aparecia, até que decidiu vender cautelas, em 62. Primeiro andava por vários sítios, mas depois acabou por se fixar na zona de Coruche, gostou daquilo. Chegou a usar o boné com estrelas, tantas quantos os prémios que tinha dado. Por seis vezes vendeu a sorte grande, o tão desejado 1º prémio da lotaria. Se todos lhe tivessem pago, teria terminado o ofício muito melhor, mas muitos aproveitaram-se da sua boa vontade e foram deixando o nome, até hoje, na lista das dívidas. Quando a filha nasceu era o que andava a fazer, a vender jogo, e por lá teve de ficar. Só a pôde conhecer no dia seguinte, a roda andava nesse dia, e já não podia ir a Lisboa devolver o que tinha comprado. Foi ela que o obrigou a parar de vender, numa altura em que a mãe adoeceu, há cerca de três anos. Não tivesse sido assim e teria ficado muito pior, reconhece agora. A filha, Ma., chegou quando a mulher tinha 39 anos, depois de muito repouso e dieta, porque até aí não tinham conseguido. Às vezes, quando estão os dois adoentados, ela chega a levar-lhes comida, de Évora, de propósito. É uma boa filha, e têm pena de a começar a maçar tão cedo, mas, afinal, foi ela que chegou mais tarde. Numa das idas a Coruche apanhou outro grande susto. Nesse dia resolveu deixar a motorizada em casa, para não correr o risco de ter um acidente, mas o destino trocou-lhe as voltas. Mesmo estando a regressar à aldeia de carro com as professoras Maria Irene e Maria Prates, acabou por ter um e partir as duas rótulas dos joelhos. Nunca pensou chegar aos 80 anos, confessa, com todas aventuras que teve e partidas que o coração também lhe pregou. Mas chegou. Agora, gosta de cuidar da horta, de fazer e tocar pífaros, de tocar concertina e outros instrumentos no rancho. Gostava de ter aprendido música com um mestre, porque sempre tocou sem ter noção de tudo. Agora há muitos professores, mas antigamente não era assim. Ainda aprendeu por correspondência, e diz ter valido a pena. Não conseguiu passar a paixão ao neto, Fi., mas nem assim deixa de o ajudar nos sonhos dele – se prefere tocar bateria, arranja-lhe uns paus e uns alguidares virados ao contrário. Uma paixão que há-de durar para sempre e que não consegue ter de lado muito tempo. A concertina está sempre ali ao lado, faz parte dele, do Luis E.. Ainda não lhe toca e já os seus dedos vão tamborilando. E depois, quando a agarra, é aquilo que todos conhecemos tão bem. São as músicas com as quais crescemos que nos invadem, tocadas pelas mãos do homem que nos fez conhecê-las também.

 

L. às 15:23
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Percebi agora que não deixei este por aqui:

 

Foi no passado dia 3 de Junho que soprou 88 velas, mas continua a ser conhecida como a menina El. Coelha. Nasceu nas Co., na casa onde morava o Zé Maltesinho, em 1924, filha de pai e mãe cortiçadenses, S. Coelho e M. E. Barroso. Diz que era uma criança má, irrequieta, que não parava. E são muitas as histórias de que se lembra para o provar. Como aquela em que a avisaram mais do que uma vez para não mexer nos alfinetes e ela resolveu fugir com eles para um buraco no meio da lenha. As horas passaram e ninguém sabia da El. – gritaram, correram, viram poços, mas dela nem sinal. Tinha os alfinetes, tudo o resto podia esperar. Foi o padrinho, grande amigo, que viu o seu gorro vermelho escondido, e a livrou de umas palmadas, dessa vez e em tantas outras. Negociava madeira nas feiras e trazia-lhe sempre um boneco de recordação, mas tinham de lho esconder, porque era estragadona. Explicavam-lhe que era a cegonha que os levava, e passou a detestá-las. A elas e ao senhor que andava a vender agulhas e linhas pela aldeia, e que a avó lhe jurara levar as meninas que se portavam mal em caixotes. Bastava ouvi-lo lá fora para não sair de casa. Lembra os tempos de folia, na escola, com saudade, a mesma que sente dos ensinamentos da professora Bá., irmã do Deusdado, que a acompanhou até ao final da 4ª classe. Depois das aulas veio a costura, que aprendeu com a vizinha Domingas. Era dispensada uma vez por mês para ajudar na casa da professora, que lhe deixava as coisas que precisavam das suas mãos num saco branco: passajava, cosia botões, fazia tudo o que era preciso. Guarda ainda, da juventude, a amizade da Cla. e da Maria D.. Era juntas que davam o passeio de domingo pela aldeia, que viam os pretendentes passar à janela, que faziam bailes improvisados, ao som da concertina do Deusdado, no quintal da Ma.. Começou a namorar aos 19 anos e casou aos 21, também com um homem da terra, J.M. da Silva. Aproveitou uma ida dela à janela, em casa da professora, num domingo de Páscoa, para a pedir em namoro. Ficava por lá de vez em quando, para lhe fazer companhia, porque o marido dela dava aulas em La.. Deixou a costura, que já tinha muito por fazer em casa - em seis anos teve quatro filhos, a Cu., a M. Si., o Zé e o M. J., e costurava para eles. Casou na aldeia porque o marido não quis ir a La., e o almoço, feito pela tia El., reuniu apenas os mais próximos. Na casa onde vive há 45 anos ainda estão os móveis que o marido fez, o chão que ele assentou, os barrotes que inventou para o tecto. Era serrador de profissão, trabalhador da serração da terra. Com o marido veio também o cunhado, que acabou por ficar em casa deles mesmo depois da morte do marido, há 8 anos, e que por ali montou uma sapataria. Por ali ficou até falecer, há 3 anos, pouco depois de partir uma perna.

É uma pessoa informada. Comenta a política e os assuntos do dia com um conhecimento raro de encontrar numa pessoa com a sua idade, e tem opinião para tudo. Defende a continuação da freguesia onde nasceu, em detrimento das vizinhas, porque até tem industria e dá emprego a tanta gente. Justifica-se com as notícias que vê, com os livros que leu. Os netos, o N. P., o Dr. Z. L. foram-lhe emprestando livros, que a ajudaram a conhecer muitos sítios, e até o Sr. Santana, da Bibliomóvel, lhe trazia já alguns de parte. Agora também teve de deixar a leitura, que os braços já não ajudam, desde que partiu um há seis anos, depois de alimentar as galinhas. Mas não foi há muito tempo que leu “Equador”, “Rio das Flores” ou o “Código da Vinci”, e até gosta de os ver depois adaptados à televisão, que os mostra mesmo como os imaginou. Já não tem força nas pernas, que a doença linfática foi-lha tirando aos poucos, mas usa a cadeira de rodas para ir até à rua, ao peal, quando o bom tempo permite, com a filha e as vizinhas, ou para dar uma voltinha maior. Queria uma como a do Estanque, mas só arranjou uma das mais ruins. Enquanto pôde correu tudo – conhece Portugal de uma ponta a outra, em excursões que fazia com o marido. Lembra-se de cada sítio com pormenor, de cada história com certeza, de cada detalhe com lucidez. Poderia escrever um livro com todas estas memórias. Vibra com histórias e gentes de outros países, e conta ao detalhe as viagens que os netos fizeram, que viveram por ela. No frigorífico mantém alinhada a colecção dos ímanes que lhe trouxeram de outras paragens, Barcelona, Croácia, Madeira. Lamenta não conhecer este arquipélago, mas fala como se já lá tivesse estado. A idade tem-lhe tirado algumas das coisas de que mais gosta, o picô, os sacos de retalhos, mas ainda a deixa conversar. Que venha o tempo bom, o sol, o calor da noite, que venham muitas noites mais, de vizinhos, de amigos, de conversa, de peal. É ruim, a cadeira, mas que seja. Enquanto as quatro rodas funcionarem, e houver vontade para empurrar, há-de haver sempre mais uma conversa para ter. Mais um passeio para dar. Mais uma história para contar.

 

L. às 15:00
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Quinta-feira, 6 de Setembro de 2012

.O B'lota

Foi na casa onde é hoje a loja da Fi. que nasceu, a 28 de Maio de 1923, Fi. Si., o segundo filho mais velho dos oito que tiveram os seus pais. Foi o princípio de uma vida que “dava para escrever um romance”. Gostou da escola, onde andou até à 4ª classe, ali era só “meninice, nada de velhice”. Ainda perdeu um ano, não porque se portava mal, apenas porque calhou mal. Como prenda pelo final da aprendizagem recebeu um cavalo e uma charrua para lavrar a terra. Foi apenas o começo da sua dedicação aos trabalhos agrícolas, que o acompanharam até à reforma. Casou a 12 de Março de 1949, em Lavre, com Ant. Gal., que conheceu ainda na escola. O namoro começou mais tarde, na monda, entre uma e outra “catrapiscadela”. Tiveram duas filhas, A. M. e M. O., que já faleceu, três netos, N., Al. e A., e dois bisnetos, M. e Fi.. Depois de trabalhar por conta dos pais esteve 10 anos na Casa Bragança, daí seguiu para a zona da Messejana, no Baixo Alentejo, tendo depois regressado à primeira Casa. Começou o trabalho por conta própria na Pita Mariça, onde esteve 4 anos. Foi uma seara “muito mal calhada”, que deu prejuízo. Passou depois pela Herdade Bem Calado, pela Quinta de Sousa, pela Pato, e ainda parou em Campo Maior, onde fazia searas de arroz e tomate. Quando chegou o 25 de Abril foi despedido, e estreou-se numa nova área, a construção civil, com o Ant. Si.. Cinco anos depois voltou à agricultura, em Elvas, como encarregado agrícola. Ficou por lá dez anos, com a esposa e o neto N., que viveu com os avós desde os 6 aos 28 anos, altura em que casou. Só depois regressou de vez às Cor., onde continuou a trabalhar por conta própria e a dedicar-se à sua horta. As doenças foram-lhe passando ao lado até aos 83 anos, altura em que resolveram aparecer todas. Primeiro foi um rim que quis parar e o obrigou a ficar oito dias no hospital, depois teve de ser operado à próstata e mais tarde voltou a entrar numa sala de operações, por causa das cataratas. A 5 de Novembro de 2011 uma queda da cama deixou-o com uma perna partida e levou-o a mais uma operação e a um mês no hospital. Pouco depois deu entrada numa Unidade em Mora para fazer fisioterapia durante três meses. Foi neste período que a esposa faleceu, vítima de doença de que padecia há já dez anos. A fisioterapia fazia bem ao corpo e à alma – fez amigos, jogou cartas pelos 20 anos que não tinha jogado, meteram-no a cozinhar e fazer actividades que não se imaginava a fazer, como mexer no computador. No diário que foi fazendo com as suas descobertas em frente a um ecrã de dedos no teclado conta que era o mais velho e o melhor, não deixava nada por fazer, não dizia não a nada. No poema que as animadoras do espaço lhe fizeram na despedida descrevem-no como o mais bem-disposto, e confessam que terão saudades de o ver por lá. Voltou em Março à sua casa, sozinho, “infelizmente”. Conta com a ajuda da filha, “extraordinária”, para ter a casa em ordem, e ocupa o seu tempo entre os jogos de cartas na Associação de Reformados e os livros, que os netos lhe vão trazendo e que também vai buscar à Biblioteca da aldeia. Gosta muito de ler José Rodrigues dos Santos, que não é muito dado a políticas, ao contrário de José Saramago, que não gosta muito por isso mesmo. Costuma ler umas quatro ou cinco horas por dia, e quando apanha o jornal não o larga enquanto não o tiver lido de uma ponta à outra. Sempre gostou de caçar, e foi muito o combustível que gastou atrás dos pombos. Dias houve em que chegou a apanhar mais de 50. Um dos seus grandes sonhos foi cumprido há pouco tempo, pelo neto, queria também ganhar asas. Fez o seu baptismo de voo em Évora, e só teve pena de não ter sobrevoado a sua terra, mas o piloto disse-lhe que o bilhete não dava para isso. Queria ter saltado de paraquedas logo nesse dia, mas não o fez porque a filha não deixou. Tem medo por causa da perna, que sabe ter de manter esticada no momento da aterragem e que não pode voltar a partir ou “lá vai o Fi. para o caixote”, mas faz contas de lá voltar para cumprir mais um sonho. Gostava também de conhecer a Madeira ou os Açores, mas a vida não está para luxos, e já não tem idade para ir sozinho. Quer ainda aprender a mexer bem no computador, e já pediu ajuda aos netos para isso. É mais um passo para acompanhar o crescimento da M., que ainda “é um botãozinho de rosa à espera de abrir”, e o Fi., “inteligente como o pai mas que precisa de campo para arrebitar”. Os planos para hoje já estão traçados, passar pelo café para ler o jornal, jogar às cartas com os amigos, e ler “A Guerra de África”, que já vai a meio. Amanhã talvez faça o mesmo, enquanto espera “o que está para vir”.

Sábado, 23 de Junho de 2012

.Escrever

Primeiro não escrevia com medo do que podia sair, agora acho que perdi a vontade. Lá vou encontrando, em alguns dias, um assunto ou outro que me faz escrever, imediatamente, um texto na minha cabeça. Mas depois o trabalho, a casa, as minhas pessoas, as correrias, que por aqui continuam, tiram-me o tempo e a vontade de as passar para aqui. E nem na minha agenda, companheira de tantos anos, de tanta vida, registo já aquilo que vou fazendo. Não é um motivo mau, o contrário - escrever sem viver, seria bem pior. 
Tinha de entregar ontem o artigo para o B'lota e pensei que o faria muito antes do tempo, já que consegui entrevistar a Sra. E. há umas duas semanas. Mas a nota "ecrever o artigo" manteve-se no telemóvel até ontem. E, mesmo ontem, fui ficando no trabalho até bem tarde, levei o Z. a jantar fora porque não queria perder tempo a cozinhar, aproveitei os saldos sem pressa, e quando me sentei, finalmente, para começar a escrever, até os programas que mais odeio na televisão me prendiam a atenção. Mas assim que comecei a ler tudo aquilo que escrevi na entrevista deu-me um grande arrependimento, como se estivesse a ser injusta com aquela pessoa e até comigo mesma. Uma senhora de 88 anos que terminou de ler há pouco tempo o "Equador" ou o "Código da Vinci", que o maior mal que vê em estar numa cadeira de rodas é não poder viajar, que levou a minha mãe a conhecer a praia do Meco quando ela tinha uns 9 anos, que se recorda de mim bem pequena a roubar o miolo das carcaças com o dedo mindinho, merecia mais atenção e respeito. Até porque, como aconteceu também com todos os outros entrevistados, foram horas de conversa, uma história que não cabe, nem metade, na folha que me é destinada, e merece um bom resumo. Até agora, todos os que leram a sua própria história, nas minhas palavras, me confessaram que choraram a ler. E isso, por estranho que pareça, deixa-me feliz. Que bom é conhecê-los assim, que bom é reconhecerem-se nas minhas palavras. Desliguei a televisão e escrevi o artigo em meia hora. E soube bem. Talvez tenha mentido lá em cima. Afinal a vontade ainda anda por aqui. 
L. às 10:18
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Terça-feira, 8 de Maio de 2012

.O B'lota

A minha terceira participação. Como sempre, entusiasmei-me a escrever e ultrapassei, em muito, o espaço que me é dado. Esta é a versão final, mais pequenina. Quando encontrei a Od. no fim-de-semana disse-me que chorou a ler, o tio Deusdado também mo disse na outra edição. E eu não posso deixar de me sentir um bocadinho orgulhosa com isto. Não se trata apenas de contar aos outros quem foram estas pessoas, do que são feitas, é muito mais do que isso.  Mais do que tudo, gosto quando se reconhecem nas minhas palavras, quando se encontram nelas. Fico feliz por me confiarem aquilo que de mais importante têm, a sua vida, e me deixarem escrever sobre isso. Haverá histórias melhores do que aquelas que realmente aconteceram? 

 

A Od. é da família, é mãe da minha madrinha, e mora mesmo em frente da minha casa do Alentejo.

  

"As noites são agora passadas no cadeirão, a televisão ligada, com as fotos de quem mais ama ali ao lado, e a ver nascer das suas mãos, em gestos decorados, rendas que prendem toda a sua atenção. Foi na casa ao lado da que a acolhe agora que nasceu Od. Filipa da Silva, a 21 de Junho de 1938. Foi ali, naquele mesmo sítio, que cresceu, a segunda rapariga dos oitos filhos que os pais trouxeram ao mundo. Foi a última a nascer, quando o irmão mais velho tinha já atingido a maioridade. O pai, M.da S. P., era um homem da terra, a mãe, F. M. da Silva, veio dos Montes Frades, onde o pai trabalhava. Fez a escola até completar a quarta classe e gostou. Gostava das rodas, de pular, dos amigos, de cantar. Foi com essas mesmas cantigas, desses tempos, que ensinou as primeiras palavras em português à neta que nasceu em França. Depois da escola ficou em casa, a ajudar a mãe e a aprender todas as tarefas para a vida. Ali, mesmo ao lado de casa, encontrou o amor de uma vida. O Prates tinha nascido na Chamusca, mas regressou à terra do pai quando completou 7 anos. Trabalhava na oficina do Ramalho, na casa onde agora mora a vizinha Q.. Um dia, vinha ela com a bilha cheia de água do sítio da Custódia Albina, porque a dali não prestava para beber, quando ele a fez parar, na vereda, perto de um sobreiro que ainda lá está, para a pedirem namoro. Tinha13 anos, mas esperaram até aos 18 para que o namoro começasse a sério. Até lá, olhavam um para o outro, e foram deixando crescer o amor que ainda hoje diz sentir dentro dela. Casaram corria o ano de 1962, em Lavre, e um ano depois chegou a primeira filha, a Ma.. Ficaram a viver na casa onde hoje vive a Maria J., e dedicavam-se à agricultura. Chegaram a ir a Campo Maior fazer searas de tomate, nas Herdades da Amoreirinha e da Barranca. Em 1966 chegou o segundo filho, o Jo.. Quando as receitas começaram a não ser as suficientes, em Novembro de 1973, o Prates rumou a França. Em Agosto de1974 a família reuniu-se em Paris. O Jo. tinha a mesma idade que o pai quando se viu forçado a mudar de casa. A princípio não gostaram da ideia, mas depois veio a escola, os amigos, o domínio da língua nova e foram-se acostumando. Ele continua por lá, onde casou e deu dois netos à Od.. O outro neto está em Portugal, para onde a filha regressou. O primeiro trabalho longe do país onde nascera foi na casa de uma professora de línguas que falava espanhol, ajudava nas tarefas diárias. Passou depois para a casa daquela a quem ainda hoje trata por “a minha velhinha”. Chegou quando esta tinha 83 anos, e só saiu depois da sua morte, aos 101. Este foi o seu último trabalho, como lhe pediu o marido antes de falecer. Ali, naquela casa, encontrou uma família. Era responsável pelas tarefas da casa. Quando se juntava a família toda, a Od. também ocupava o seu lugar à mesa, como membro. Quando o Prates adoeceu, convidaram-nos a ficar ali, num quarto daquela casa, que tinha elevador e não o obrigava a subir até ao 4º andar pelas escadas. Enquanto ocupava as suas funções, o Prates fazia companhia à velhota no sofá que se vê no álbum de fotos do 100º aniversário, que o neto ofereceu à Od. Nas três vezes em que o Prates foi operado tinham uma senhora que a substituía para que lhe pudesse fazer companhia na clinica, no outro lado da cidade. Ia de manhã e só regressava à noite, para fazer companhia à velhota, e sempre lhe pagaram o ordenado da mesma forma. O Prates não teve tanta sorte, nem sempre o ordenado era pago a horas na empresa de alumínios, e nem sempre as pessoas o tratavam da melhor forma. Viria a falecer em 1996, em Portugal, vítima da doença. A Od. regressou para fazer companhia à sua velhinha, que faleceu em casa só com ela. Reformou-se aos 65 anos, num sistema de pontos que não olha ao trabalho de uma vida e a todos os impostos que tanto custaram a pagar. Como a reforma não lhe permitia manter a casa de Paris e não queria sobrecarregar os filhos, regressou à sua casa, nas C..  Há dias em que se arrepende, de se ter mudado, de não ter tirado a carta. Tinha tudo ao pé da porta, conseguia resolver tudo sozinha. Agora, com a explosão do multibanco, acabou-se o resto. Guarda boas recordações dos tempos de França, e tem saudades. Acha que teve sorte, sempre em casas boas, de pessoas educadas, que a estimaram. Ainda hoje, quando lá regressa, se encontra com a filha da sua velhinha. “Esta foi a minha vida, mas ainda não acabou”, diz em jeito de remate. E começa a falar dos netos, da Mar., já com a idade que tinha quando foi pedida em namoro pela primeira vez, do Ri., a quem já imagina um namorico agora que chegou à faculdade, do To., que arranjou uma namorada num país diferente. Quando o Prates chegou a Paris não tinham telemóveis nem internet e amor não diminuiu. Agora têm todas as facilidades, e do longe se faz perto. Para eles, que lhe distraem o pensamento entre um e outro ponto de renda, um desejo entre tantos outros. Os avós nunca namoraram mais ninguém e sempre se amaram um ao outro. Que os netos tenham essa sorte também."

Sexta-feira, 23 de Março de 2012

.O B'lota

A minha segunda participação. (Tenho a sorte deste senhor ser meu tio)

 

Esta é uma história que não começa na aldeia, mas um bocadinho mais ao lado. Corria o ano de 1923 quando nasceu um dos 14 filhos de A. S. P. e M. F. P., um dos 10 que sobreviveu, o único que ainda existe, no monte das Casas Novas. Baptizou-se M. Deusdado, como o marido da madrinha, filha do feitor geral do Vale da Lama, para quem a mãe trabalhou. Ficou órfão de pai muito cedo, aos 9 anos – a doença não se deixou vencer nem pela água que veio de Fátima, pelo caminho de ferro, até São Torcato, depois de a beber faleceu. Começou a trabalhar cedo, num café de Montemor, logo depois de fazer o exame da quarta classe nessa mesma cidade, onde chegou de carroça. Não ficou muito tempo, o dono era “uma excelente pessoa”, mas o irmão acabou por ir buscá-lo, por causa da falta de respeito que havia na casa. Regresso à terra para se dedicar às suas terras, à agricultura, não quis seguir os estudos que o podiam ter levado a ser aquilo que gostava, professor. Por essa altura, a concertina era uma companhia para ele e para os outros, nos bailes e festas onde tocava. Teve de comprar outra depois de ver a GNR apreender-lhe a que tinha. Afinal, o senhor que lha vendera tinha-a comprado com o produto de um roubo de uns suínos, só detectado quando os animais já estavam na salsicharia. Tratava dos animais, fazia searas com os irmãos, numa altura em que se semeava muito, até que, aos 20 anos, a tropa o levou de novo embora, para Lisboa. Foi nessa altura também que se deixou de cantorias e se desfez da concertina. Assentou praça a 17 de Dezembro e por lá ficou cinco meses, depois mudou-se para o Quartel General da 4ª Região Militar, em Évora, e em Julho de 1946 passou à disponibilidade. Houve um General que o quis convencer a ficar, tinha uma letra tão bonita e tanta vontade, mas o apego ao campo e à terra era mais forte. Quando voltou atrás, a vida já não lhe permitiu ingressar novamente no exército – o General havia liderado uma revolta contra Salazar, e passara também ele à reserva, forçada. Regressou, uma vez mais, às terras que lhe pertenciam. A mulher, Cl., lembra que era um jovem bonito e de conversas bonitas. Aos 18 anos começou a fazer os versos que lhe valem a alcunha de poeta da terra, nos ajuntamentos com os rapazes, em resposta às desgarradas dos mais velhos. Talvez tenha sido isso, a cara, o dom da palavra, que roubou o coração de uma moça de boas famílias em Évora. Mas o coração já estava dado à Cl., apesar de o pai dela não aceitar muito bem. Foi só em 1952 que ganhou o direito de namorar como os outros rapazes, à janela, de 15 em 15 dias, até antes do sol-posto. Um direito conseguido com dificuldade: numa das festas da terra, numa corrida de cavalos, acabou por cair e ser levado ao hospital, em Lavre, quase dado como morto. A Cl. saiu de casa, sem ordem dos pais, subiu à carroça do futuro cunhado, e correu para o hospital, onde o encontrou em coma, do qual viria a acordar. A reprimenda nunca chegou, e uns anos depois veio o casamento. Casa não tinha, “mas nunca ninguém deixou de casar por causa disso”. O sogro construiu uma para a filha, de onde saíram só 25 anos depois, depois de dividida a herança da família. A primeira pessoa a bater-lhe à porta foi um mendigo, logo no dia a seguir ao casamento. “Foi uma bênção, era o pobre da Cl.”, que já o conhecia de casa dos pais, onde costumavam ajudar quem lá passava a pedir. Deram-lhe uma moeda, comida ainda não havia ali, e nunca mais o viram. Foi naquela casa que viu nascer a filha e o filho. Era ela pequena, apenas com dois anos, quando seguiu a vida da agricultura noutra terra, em Elvas, onde foi administrar searas de trigo e arroz que chegaram a dar 22500 sacas. Voltou à aldeia, e logo depois nasceu o filho, que veio de surpresa. Começou uma vida nova, dedicou-se ao gado, e, pouco a pouco, nas pastagens do Vale da Lama que arrendou ao sogro, foi juntando rebanhos e uma vacaria. Eram 42 vacas, todas com nome, que lhe reconheciam a voz, e o fizeram chorar quando foi obrigado a desfazer-se delas. O filho, ao ver-lhe as lágrimas, ainda se ofereceu para dar o dinheiro do mealheiro – gesto inocente de criança que ainda hoje comove os pais. A ligação aos animais sempre foi muito forte, e nem as feridas, o braço e o pulso partido que lhe causaram, o fizeram gostar menos deles. Mudou para a casa onde ainda hoje vive já a filha tinha completado o curso de professora. Começou a trabalhar por essa altura com um senhor do Norte, também no mesmo ramo, uma ligação com cerca de 20 anos que terminou agora, quando se retirou para descansar. Ainda dá uns passeios de carro, um hábito que demorou a adquirir – só depois de 32 anos de carta juntou à bicicleta a pedal e a motor, na garagem, um carro. Ajuda na ida às compras ou na visita aos netos e bisnetos, quando vêm ao continente. O primeiro custou-lhe 220 contos, “uma pechincha”, diria o cunhado Marcelino. “Vão rir-se da história da tua vida, marido, mas foi honesta”, diz a Cl., que tem nos olhos o mesmo amor de há quase 60 anos. Uma vida que pode se resumida assim: “Não me importa ser quem sou, / Não me sinto envergonhado, / Pois sendo aquilo que sou, / Sou sempre o M. Deusdado.”

Lá fora: [pip]
Terça-feira, 14 de Fevereiro de 2012

.O B'lota

A minha primeira colaboração:

 

O Sr. MC é um homem da terra que conhece tão bem. Aqui nasceu, na casa que um dia ocupou o espaço onde agora podemos ver “o monte que era do Rafael”, corria o Verão de 1937, no dia 17 de Julho. A escola também foi feita na aldeia, até à quarta classe, aquilo que mais adorou. Gostava tanto das letras como dos números, e quando a professora ditava os problemas do quadro chegava a dar a resposta mal ela terminava de falar. O companheiro de carteira, o A. P., “também era uma pessoa importante nestas coisas”, mas ele chegava a passá-lo. Nesse tempo, as meninas estavam no edifício agora ocupado pela Associação de Jovens e os meninos na escola que um dia existiu perto do J. F.. Só se visitavam uns aos outros uma vez por semana para fazerem provas. “Quem me dera que tivessem feito por mim o que fiz pela minha filha, a A.”, diz com alguma tristeza. Os tempos eram outros, e depois da escola chegou o trabalho no campo. O primeiro foi na Pita Mariça, a tirar os lismos dos campos de arroz com um ancinho. Ganhava 4 tostões por dia, e o patrão dava-lhe mais um por semana. Depois disso correu aqueles mesmos campos com uma lata pendurada ao pescoço, de pau na mão, para espantar os pardais, “mas eles não tinham vergonha, pousavam a uns100 metros”. Foi ali, no mesmo sítio, que experimentou mais uns quantos trabalhos diferentes e que seguiu as pisadas do pai, como anotador das folhas de ponto, onde escrevia as horas que o rancho fazia. Ainda tem folhas anotadas pelo pai. Ao sábado chegava o patrão, J. S., que estendia a saca carvoeira com as notas e as ia distribuindo de acordo com o que ele ia dizendo. Não falhava, “ainda hoje de cabeça vou a muito lado”. E vai, a memória do Sr. MC surpreende-nos a cada frase: as datas, os nomes, as histórias, estão na ponta da língua. Gostou dos tempos que ali passou, na Pita Mariça, e das coisas que fez antes de se dedicar à construção civil. Para atrás ficou o sonho de se tornar engenheiro civil, mas a prática acompanhou-o, “assim que assentava o primeiro tijolo já estava a ver o acabamento lá em cima, porque é nos bons princípios que estão os bons fins”. O jornalismo só chegou mais tarde, há quase 40 anos, mas tem gosto naquilo que faz. “Todos devemos fazer uma acção pela terra”, defende, e esta é a dele. Fá-lo por todos os assinantes da terra, que chegou a ter o maior número do concelho, e por todos os que optaram por viver noutros sítios mas deixaram parte do pensamento e do coração na aldeia. Quando o encontram fazem questão de lhe agradecer, como poderiam saber de tudo aquilo se ele não o escrevesse? E chegam a ligar-lhe para confirmar apostas que às vezes surgem entre um e outro copo de vinho no café, a memória do Sr. MC é o melhor tira-teimas da aldeia. Agora gostava de passar a tarefa a alguém, mas não encontra quem o queira substituir. Para saber as notícias corre a aldeia, telefona, investiga, “não quero erros que possam dar barracadas”, mas, agora, a doença que lhe apanhou o pulmão, “a terceira tragédia em cinco anos”, prende-o mais ao sofá e já não lhe deixa tanto tempo como gostaria para se dedicar à escrita. Também as idas ao Santa Maria lhe roubam tempo. O mesmo hospital para onde foi em 1983, depois de cair do telhado da obra do J. C., de helicóptero, o segundo que veio a V. N. buscar um doente. Só acordou treze dias depois, na cama de casa, sem poder ouvir do lado direito. “Estava marcado assim”, conta sem se lamentar, “acredito no destino, mas auguro sempre um bom futuro”. E dele fez parte a esposa, a D. F.. Conheceram-se no trabalho, mas não a trabalhar. Foi na obra do J. R., ali nos Carapuções. Ela pediu-lhe um conselho sobre uma barra para o muro, e ele respondeu-lhe que só lhe podia dar alguma coisa do concelho de Montemor, do de Coruche não tinha nada. “E aproveitou-se o seguimento da conversa, e deu no que deu”, há já quase 50 anos. Apesar do namoro, portou-se bem, a casa ainda hoje está de pé. Da boca do Sr. MC, que não se cansa de falar para quem não se cansar de ouvir, saem histórias que nos fazem viajar a uma aldeia que nunca vimos (“sabias que havia uma praça de touros ao pé da antiga escola?”), conhecer pessoas que nunca cruzaram os nossos dias (“o A. A. levava tudo pela frente”) e saber da nossa própria história (“no dia em que nasceste levei a tua avó a Montemor com a M. M.”). “A vida antigamente era mais bonita”, e o Sr. MC lembra-se melhor dessas coisas antigas do que das de agora. Está só à espera de uma visita, que tanto gosta de receber e fazer mesmo sem ser por doença, para voltar a contá-las. E há muitas mais no sítio de onde estas vieram.

L. às 11:00
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