Quarta-feira, 25 de Junho de 2014

.7

Ontem chegámos aos 7 meses, tu e nós. 7 meses juntos, 7 meses a ser bebé, filha, 7 meses a ser pais, a ser felizes como não imaginámos antes. 7 meses que passaram a correr. Por outro lado, penso que ainda só passaram 7 meses. E tu já mudaste tanto, e já fizemos tantas coisas boas. Pelo meio, houve coisas más também. Como quando o teu hemangioma ulcerou, choraste toda a noite, acabámos nas urgências para onde voámos contigo ao colo. Nesse dia fui forte, como dizem que as mães têm de ser, e só chorei quando vi outro bebé entrar com falta de ar. Passem os males dos pequenos para nós, por favor! Nenhum bebé/criança do mundo devia sofrer. Foste vista por não sei quantos médicos, e uma coisita que era apenas uma mancha quando nasceste, e que cresceu de mais, continuava a sangrar e, pior, a doer-te. E eu percebi, pela primeira vez, que não te consigo salvar de todos os males. Não deviam as mães poder fazê-lo? Ainda assim, foi um dia cheio de sorte. Porque te trataram bem, se preocuparam contigo, fizeram mais do que deviam para te ver bem. Terminámos o dia num outro hospital, no cardiologista, que deu autorização para que começasses a fazer um tratamento com beta bloqueantes. Uma coisa ainda experimental, que toda a gente nos diz para não termos medo, apesar de te reduzir o ritmo cardíaco, diminuir o açúcar no sangue e teres de o fazer 3 vezes ao dia até, provavelmente, aos 2 anos. Mas ver-te melhorar tão depressa deixa-nos cheios de esperança. Não te ver a sofrer deixa-nos de coração cheio. Sofremos também, os 3, porque não querias pegar no biberão – nem comigo noutra divisão, nem fora de casa, nem em posições ou sítios diferentes, nem com outras pessoas, nem com tetinas de diversas marcas, nem com leite aquecido, descongelado, à temperatura ambiente ou acabado de tirar. Querias, só, mama. Mas a vida não pára e eu tive de regressar ao trabalho. O pai, apesar de ter dito que não ia montar uma tenda à porta do meu estaminé (mamavas de duas em duas horas!), lá cedeu depois de tanto sofrimento – veio contigo todos os dias até mim, à hora de almoço, para mamar. E que bem que me soube, confesso. Só nos últimos dias de licença do pai voltámos a experimentar o biberão, primeiro com água, depois leite, e agora parece que o fizeste desde sempre. Entretanto, e à conta do propanolol, não podias estar 4 horas sem comer, e começámos as papas um bocadinho antes dos 6 meses. No biberão até bebes bem a papa, no prato, à colher, fazes uma birra enorme, assim como fazes com a sopa e com a fruta. Por ti, vivias bem só com leite. Na próxima semana já vais para o colégio e, se o meu coração fica pequenino só por pensar nisso, espero que esta seja uma das coisas em que elas te façam mudar. Não estamos lá nós, terás de comer de qualquer maneira, espero. Agora, também já pegas na chupeta. O pai experimentou numa das tuas birras, e ficaram grandes amigas. Até já consegues adormecer sozinha na tua caminha, desde que a tenhas (ainda no nosso quarto, que ainda não tive coragem de te mudar). Não é uma paixão avassaladora, porque passados uns minutos acabas por deitá-la fora, mas adoras ficar a ‘mordê-la’, como fazes com tudo o que apanhas. Agora, desde que começaste as sopas, temos um novo amigo lá em casa, o Bebegel. Tu, que sujavas quase todas as fraldas e mesmo as roupas, deixaste, pura e simplesmente, de conseguir fazer cocó sozinha. E sofres mesmo com isso. Mesmo com estes pequenos problemas (pequeninos mesmo, quando comparados com outros), é tão bom. Sou tão feliz por ser tua mãe. E sei que também és feliz, consigo vê-lo. E há quem o note e o diga. Penso que não é dos meus olhos, mas és linda. E não consigo deixar de sorrir quando as pessoas mo dizem – como a senhora no Campo Pequeno que me dizia: “você já viu bem os olhos da sua filha?”, e eu preocupada se tinhas alguma coisa, mas não, queria só dizer que “tinhas os olhos mais bonitos que eu já vi”. As rotinas vão mudando, e nós vamo-nos adaptando. Depois da licença do pai estive eu de férias. Comigo detestas comer, fechas a boca com toda a força e ali não entra nada. Se despachas a mama em 5 minutos, e ela até está à tua frente, porque hei-de estar uma hora a dar-te sopa? Depois terminaram as minhas férias e voltou o pai. E como és feliz com ele. Só de ouvires a voz ficas em êxtase, dás pulinhos e ris muito. Para mim só há sorrisos grandes quando chego a casa, depois passa. Continuas a mamar de noite, por volta das 4, e eu adoro. Ouvir-te a resmungar, pegar-te ao colo, meter-te na nossa cama, aninhar-te a mim e ficar ali a dar-te beijinhos enquanto mamas. Depois, antes de sair às 08:00, volto a fazer o mesmo – já passámos por várias fases: primeiro dava-te o medicamento, trocava a fralda e voltava a adormecer-te com a maminha; agora dou-te mama a dormir e o medicamento logo de seguida, muitas vezes sem que acordes. E ali ficas, deitadinha com o pai, até quase às 11:00, para comeres a sopa logo de seguida. Exiges muita atenção, ris-te muito para toda a gente, e continuas a preferir os homens. Conversas muito, tanto! Usas o 'dá' e o 'cá' quando estás feliz, e o 'tátátá' para reclamar. Ainda não tens dentes, nem gatinhas, mas quando estás de costas consegues percorrer tudo só a fazer força nos pés e a levantar o rabo, e viras-te para todo o lado. Já consegues ligar a luz do fraldário, tens só de te esticar muito. Como gostas de a ver! No centro de saúde acham que aumentas mais de peso do que de comprimento, mas a pediatra diz que estás bem e a roupa vai deixando de servir - nas tuas perninhas gordinhas e rabo de família já só servem calças para 9 meses. Continuas a gostar de banho e a fazer birra no momento dos cremes e do vestir. E adoras fazer um xixi na toalha logo que sais da banheira. Já foste à praia e detestaste tudo: a areia, a água, o sol. Tenho esperança que isso mude. Só isso. Apesar de saber que tudo muda, e que para a semana temos uma nova etapa, e tudo mudará muito mais do que até aqui. Queria dizer “não faz mal”, mas não consigo. Faz mal, faz pois. Gosto disto que temos. Custa-me não ver tantas primeiras coisas que irás fazer. Custa-me deixar-te ali e não passar mais tempo contigo. Mas posso prometer-te que vou estar a contar todos os minutos para chegar ao pé de ti, abraçar-te com toda a força, dar-te um beijinho no teu arrepio, outro na bochecha, e esperar pelo teu sorriso de volta, enquanto sinto os teus braços à minha volta e me arrancas mais um cabelo. Como já faço todos os dias desde que sou tua mãe. Já te disse que sou feliz contigo todos os dias? Sou, pois.

 

(Aqui, ao colo de uma das pessoas preferidas, o tio J.)

Sábado, 23 de Junho de 2012

.Escrever

Primeiro não escrevia com medo do que podia sair, agora acho que perdi a vontade. Lá vou encontrando, em alguns dias, um assunto ou outro que me faz escrever, imediatamente, um texto na minha cabeça. Mas depois o trabalho, a casa, as minhas pessoas, as correrias, que por aqui continuam, tiram-me o tempo e a vontade de as passar para aqui. E nem na minha agenda, companheira de tantos anos, de tanta vida, registo já aquilo que vou fazendo. Não é um motivo mau, o contrário - escrever sem viver, seria bem pior. 
Tinha de entregar ontem o artigo para o B'lota e pensei que o faria muito antes do tempo, já que consegui entrevistar a Sra. E. há umas duas semanas. Mas a nota "ecrever o artigo" manteve-se no telemóvel até ontem. E, mesmo ontem, fui ficando no trabalho até bem tarde, levei o Z. a jantar fora porque não queria perder tempo a cozinhar, aproveitei os saldos sem pressa, e quando me sentei, finalmente, para começar a escrever, até os programas que mais odeio na televisão me prendiam a atenção. Mas assim que comecei a ler tudo aquilo que escrevi na entrevista deu-me um grande arrependimento, como se estivesse a ser injusta com aquela pessoa e até comigo mesma. Uma senhora de 88 anos que terminou de ler há pouco tempo o "Equador" ou o "Código da Vinci", que o maior mal que vê em estar numa cadeira de rodas é não poder viajar, que levou a minha mãe a conhecer a praia do Meco quando ela tinha uns 9 anos, que se recorda de mim bem pequena a roubar o miolo das carcaças com o dedo mindinho, merecia mais atenção e respeito. Até porque, como aconteceu também com todos os outros entrevistados, foram horas de conversa, uma história que não cabe, nem metade, na folha que me é destinada, e merece um bom resumo. Até agora, todos os que leram a sua própria história, nas minhas palavras, me confessaram que choraram a ler. E isso, por estranho que pareça, deixa-me feliz. Que bom é conhecê-los assim, que bom é reconhecerem-se nas minhas palavras. Desliguei a televisão e escrevi o artigo em meia hora. E soube bem. Talvez tenha mentido lá em cima. Afinal a vontade ainda anda por aqui. 
L. às 10:18
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Quarta-feira, 18 de Abril de 2012

.Desabafo

Depois de todas as coisas más dos últimos tempos, notícias e acontecimentos, era capaz de jurar que estava pronta para enfrentar tudo o que me aparecesse pela frente. Depois, ontem, senti as lágrimas a caírem pela cara abaixo, antes mesmo de conseguir pestanejar, e percebi que não.

 

 

Lá fora: “Foi nesse dia que percebi / Nada mais por nós havia a fazer / A minha paixão por ti era um lume / Que não tinha mais lenha por onde arder”

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L. às 13:58
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Sexta-feira, 10 de Fevereiro de 2012

.Música

Lá por casa, no Alentejo, sempre se ouviu muita música. Os pais tinham uma aparelhagem grande, com um vidro que eu utilizava como espelho, e onde me ia vendo enquanto cantava e dançava – aos poucos deixei de me conseguir ver toda lá, e só as pernas apareciam. Não é difícil encontrar por lá microfones de todas as espécies – madeira, cortiça – as pessoas sabiam da minha veia artística e ofereciam-me, muitas vezes feitos por eles próprios. Chegaram a querer inscrever-me no Mini Chuva de Estrelas, de tanto me ouvirem a cantar “mãe sobe a semanada”, dos Onda Choc. Ainda bem que lhes passou. Num destes dias, enquanto ia para casa depois de mais um dia de trabalho, ouvi Joana, um dos discos que os pais também tinham. Comecei a cantar aquilo como se tivesse ouvido todos os dias e a lembrar-me de todas estas coisas, perdidas no baú das recordações.

 

Ontem, quando fazia a ronda habitual pelas notícias, li esta. O Wando (“Você é luz / É raio estrela e luar / Manhã de sol / Meu iaiá, meu ioiô”) morreu. Já não sei como foi parar o cd duplo lá a casa, mas foram muitas as vezes que eu, já com a mana, já na nossa casa de agora com uma aparelhagem nova e um espelho onde apareceríamos sempre, mesmo que crescêssemos mais um metro, cantámos e dançámos com ele como companhia. Quantas lágrimas aturou ele, de desgostos de amor, de brigas, sentada no chão do quarto, costas na cama, e a música dele de fundo. Neste domingo, quando passar lá por casa, vou procurá-lo, deu-me saudades, e nunca se sabe quando pode fazer falta.

 

E por falar em música, deixar aqui esta, que não me sai da cabeça, misturada com tantos outros pensamentos que me assombram por estes dias.

 

“Ninguém disse que os dias eram nossos

Ninguém prometeu nada.

Fui eu que julguei que podia arrancar sempre

Mais uma madrugada.

 

Ninguém disse que o riso nos pertence

Ninguém prometeu nada.

Fui eu que julguei que podia arrancar sempre

Mais uma gargalhada.

 

E deixar-me devorar pelos sentidos,

E rasgar-me do mais fundo que há em mim

Emaranhar-me no mundo, e morrer para ser preciso,

Nunca por chegar, ao fim.” [Mafalda Veiga]

L. às 14:55
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Quarta-feira, 25 de Janeiro de 2012

.Despedida

O 'Marcos' (lê-se com sotaque brasileiro) mudou-se comigo para a Avenida do Brasil, em São Marcos, há já algum tempo. Foi naquela casa que abandonou a vida, depois de o deixarmos à sombra num fim-de-semana de sol. E ali ficou o seu esqueleto, na sala, a fazer-nos companhia todos os dias, enquanto não chegava a coragem para nos separarmos. Ontem, quando fizemos o último carregamento para a casa nova, chegou o dia. E lá o deixei, em São Marcos, terra onde fomos felizes, plantado bem perto de casa, num jardim onde todos os dias passam muitas pessoas e se ouvem muitas gargalhadas. Pareceu-nos um bom sítio para se descansar de uma vida boa. E depois, porque sou mariquinhas e porque a despedida do 'Marcos' (lê-se com sotaque brasileiro) foi também a despedida de uma fase importante, e o acumular de dias cansativos, chorei um bocadinho. Se passarem por lá digam-lhe olá. Mesmo parecendo apenas só um tronco com ramos, sempre foi um bonsai bonito e simpático. Eu talvez passe por lá hoje ou amanhã - as despedidas são-me sempre difíceis. 

L. às 09:18
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Sexta-feira, 9 de Dezembro de 2011

.Pessoas

Fui jornalista durante pouco tempo – nem carteira cheguei a pedir, mas deu para perceber uma coisa: se pudesse, escrevia apenas sobre pessoas. Lembro-me de uma vez, enquanto estava a trabalhar nas revistas dos barcos, ter ido entrevistar um casal português que vivia num barco com os dois filhos menores, os únicos portugueses que já tinham dado a volta ao mundo de barco por duas vezes. Adorei conhecê-los, conhecer aquelas histórias que nunca me atreveria a viver. Escrevi um artigo que achei, modéstia à parte, realmente bom. Os colegas que leram gostaram bastante e o pai do meu chefe da altura, um senhor exigente que nos corrigia os artigos, chegou a ligar-me para elogiar a escrita, o encadear das histórias – disse-me que tinha sido um dos melhores artigos que já lera sobre o assunto. O pior foi quando o chefe me chamou à sala para falarmos sobre o artigo e rasgou as folhas à minha frente. Afinal, o que era aquela porcaria? Os leitores queriam saber que avarias enfrentaram, como tinha reagido o barco, como funcionaram as velas, e coisas assim. Saber como tinham aulas os miúdos? Quem eram os amigos? Como se encontravam? Como se passavam 24 horas num barco sem se cansar? Isso não interessava para ninguém. E lá voltei eu a Cascais, à conversa com eles, para poder então escrever o artigo que interessava ao meu chefe e aos leitores da revista, mas não a mim. Talvez tenha sido nesse dia que percebi que nunca ia chegar longe no jornalismo – moldei o artigo a mim, àquilo de que gostava – as pessoas, quando, afinal, não era isso que devia ter feito. Mas é possível ser-se jornalista sem deixar uma marca pessoal?

Na minha terra, há já algum tempo, formaram uma associação de jovens. Não faço parte, limito-me a participar em algumas das iniciativas e, ainda que não seja próxima de todas as pessoas que a compõem, tenho muito orgulho delas. Porque, continuando algumas pela terra ou só estando nela ao fim-de-semana, tiveram a coragem de se juntar para lutar por qualquer coisa. Organizam torneios de tudo e mais alguma coisa, fazem festas, passam filmes, reivindicam – e tudo isto me parece muito bem. Não há muito tempo passaram a ter também um jornal e convidaram-me agora para escrever qualquer coisita para lá. Não demorei muito a escolher o tema – pessoas. Cada uma desta aldeia deve ter uma história gira para contar, uma lição para ensinar, um gesto que faça rir. E o melhor é aproveitar agora, enquanto ainda estão cá, e registar e dar a conhecer este património da aldeia.

Para primeira edição escolhi uma pessoa que toda a gente conhece, o senhor M.C.., o jornalista da terra. Não se formou na área, mas poderia muito bem formar gente. É ele que todos os meses escreve as novidades da terra para o jornal do concelho, e nem a doença o impede de continuar a fazê-lo.

Tirei o dia de férias e estou pela minha aldeia. Ontem tive o melhor feriado possível – em casa, com os pais, a mana e os respectivos apêndices, à volta do lume, com comida, jogos e muita  conversa. Agora estou sozinha em casa, a mãe está a trabalhar na loja, o pai foi à lenha com o Z., a mana foi com o namorado a V.N. arranjar os pneus da carrinha do pão que já teve dois furos hoje. Estou a ganhar coragem para sair de casa e ir bater à porta do senhor M.C.. Falamos muito quando nos encontramos por acaso, ele até veio visitar o pai quando foi operado, mas desta vez é diferente. Primeiro porque não entrevisto ninguém há muito tempo, depois porque acho que é sempre melhor que nos contem coisas porque querem e não só porque perguntamos. Vou tomar um banho bem quente, ligar o rádio que tanto orgulho dá ao pai, e começar a pensar no que lhe vou perguntar daqui a instantes. O medo há-de passar quando lá chegar, ou não fosse eu a L. de sempre – quando a conversa começar o difícil vai ser parar. Ou não fosse este o meu tema preferido de todos – pessoas.

Quinta-feira, 27 de Outubro de 2011

.Castigo

Sou uma má paciente. Mesmo. Vou ao médico quando é preciso e quase por obrigação. Gosto de coisas com efeito rápido e que não me obriguem a muito trabalho. É por isso que fico tão feliz, mesmo com menos 100€, quando vou secar os derrames ao Dr. Serra Brandão, mas depois me esqueço de tomar o Daflon todos os dias como ele me manda. Os feios já saíram, deve pensar o meu cérebro, quando aparecerem mais logo havemos de lá ir outra vez. Tomar medicamentos para que não apareçam? Dá muito trabalho. A minha dermatologista, que é uma das pessoas de quem eu mais gosto e que me conhece desde os 12 anos, é uma santa. Já me tirou as verrugas da cara com laser, acabou com as minhas borbulhas, e salva-me sempre de qualquer aflição com esta minha pele estranha que até a cintos com metal ou havaianas molhadas faz alergia. E mesmo assim eu não faço tudo o que ela me manda. Vou à consulta, compro tudo o que me receita, leio as bulas, e acho que só isso me põe logo boa - acho que nisto saio à minha avó T., só por termos as coisas no armário ficamos bem. Quanto às idas ao ginecologista, sou ainda pior. Feitas as contas, não ia lá há dois anos e meio. Pelo meio, portei-me mesmo mal. Auto-mediquei-me, levei apenas duas doses da vacina do cancro do colo do útero e deixei passar o prazo da terceira (e já não posso voltar atrás), entre outras coisas do género. Por estes dias achei que seria melhor marcar uma consulta, até porque o Verão não foi meiguinho: uma candidíase e uma infecção urinária. A médica que me atendeu a última vez já só tinha consulta para o próximo ano, então resolvi ir à que tinha vaga mais depressa. E não correu bem. Que idade tem? Hum. E já com este estado civil? Está certo? Que aconteceu? Nos primeiros instantes ainda pensei que me tinha enganado e me tinham mandado para uma psicóloga. Foi só quando mudou bruscamente de tema que percebi que estava no consultório certo. Não sorriu e foi dura. Sabia que tem uma ferida bastante acentuada no colo do útero? Pois, não deve saber porque não vem a uma consulta há muito tempo. Vai pôr durante oito dias estes óvulos e regressa cá daqui a um mês. E eu pensei que o pior de tudo seria ter de regressar lá. E que desta vez tinha mesmo de colocar (o Z. diz que quem ‘põe’ são as galinhas) os óvulos todos até ao fim. Mas não. Para além das dores e da impressão da citologia, que ainda duram (sou mariquinhas, pois sou), ninguém consegue perceber o que foi que ela me receitou. Ontem estive uma hora inteirinha na farmácia. Tinha ido lá de véspera e o rapaz mandou vir aquilo que percebeu, ontem eu e a colega percebemos que ele tinha encomendado um estimulante sexual (Feminine). Pesquisámos no Google, no Infarmed, ligámos para armazéns, e para o hospital, mas a médica só regressa a 7 de Novembro, e não conseguimos detectar o que seja. Lembro-me dela dizer que era uma coisa nova, e que existia em óvulos e em comprimidos, o nome não fixei. Até podia justificar com letra de médico, mas a dela nem é das piores. E pronto, castigo dos castigos, agora preciso mesmo de um medicamento, uma coisa que começa por 'Fe' ou 'Flu' e tem três 'i', e nem consigo saber o que é - nem eu nem ninguém. Verdade das verdades, eu já merecia uma lição destas. Castigo.

 

Há alguém que consiga decifrar? Obrigada.

 

Domingo, 2 de Outubro de 2011

.Gestos (de amor)

Assim que começaram a aparecer melancias nos supermercados, mal tinha começado o Verão, fiquei cheia de vontade de comer uma bem fresquinha. Estávamos a fazer as compras perto de casa e partilhei a minha vontade com o Z., enquanto olhava para as metades vermelhinhas já expostas. E ele, forreta de primeira, sai-se com esta: “não vamos levar isso, já viste o preço?, nem pensar nisso, depois os meus pais têm lá na horta e comes à vontade”. Claro que não lhe dei ouvidos, tinha tanta, mas tanta vontade e saudades de uma boa melancia que lá consegui juntar uma metade ao cesto das compras. Chegámos a casa e, antes de fazer o jantar, resolvi parti-la toda aos bocadinhos numa tacinha e pô-la na sala. Quando voltei, já com o jantar pronto, não havia nem um bocadinho para amostra. Então, o que é aconteceu? Ainda me passou pela cabeça que ele ma tivesse escondido, mas não, sem se aperceber tinha comido mesmo tudo – nem cheguei a provar. Mas, a verdade, é que o rapaz tinha razão: não me faltaram melancias durante todo o Verão. Estamos a entrar em Outubro e a horta dos pais ainda a dar. Temos trazido quilos e quilos delas, que transformamos em sumo na Bimby. Na semana passada não trouxemos, porque ainda tínhamos duas em casa, mas, azar-azarinho, por estarem ali há algum tempo, já não estavam muito boas e tivemos de fazer aquilo que menos gostamos, deitar tudo fora. E lá fiquei eu com vontade de comer melancia outra vez. Ontem voltámos ao supermercado e quando tentávamos decidir que fruta levar para casa partilhei a minha vontade com ele, que deu uma gargalhada do tipo nem-penses-nisso-só-podes-estar-a-brincar. Achámos melhor dar uma voltinha para comprar os outros itens da lista enquanto decidíamos. Tínhamos voltado àquela secção quando o telefone tocou, era a mãe. Sei que quando me liga fora de horas nunca tem boas notícias e confirmou-se, a avó Mariana tinha falecido há poucas horas. Fiquei ali, no meio da fruta, a encaixar o golpe de realidade, a conter as lágrimas, e o Z. só me disse: “Se te faz feliz, levamos melancia”, e passou-me uma metade vermelhinha para as mãos. Naquele momento, foi mesmo o melhor que eu podia ouvir e foi a única coisa que me fez sorrir. Esqueceu os argumentos dele, engoliu as palavras tantas vezes ocas que se dizem nestas alturas, e só se preocupou em ver-me feliz. Percebi, mais uma vez, que o valor dos gestos (de amor) não está no tamanho, na forma, nem no sítio. É só preciso amor. E pode bem ter a forma de uma melancia. [Obrigada]

Segunda-feira, 26 de Setembro de 2011

.A avó Mariana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sempre a conheci como a avó velhinha, nunca por bisavó. Tem um nome bonito, escolhido há já 91 anos, Mariana, mas todos a tratamos assim. Ficou viúva muito cedo, com sete filhos, depois de ter casado aos 17 anos. O avô Al. foi o primeiro a chegar. Morou sempre naquela casa pequenina, depois de V.N., ao lado de uma das filhas. Lembro-me de ir lá com os avós e nunca ter passado da cozinha. Sentava-me nas cadeiras encostadas à parede, ao lado dos armários cheios de pratos antigos, e via a mesa no meio, sempre sem pó, sempre cheia de fotografias a preto e branco de pessoas que nunca cheguei a conhecer, e uma caixinha de bolachas que abria para nós. Só a idade a obrigou a sair de lá. A avó Mariana é muito pequenina e magrinha. Tanto que cheguei a ter medo de a partir sempre que lhe dava um abraço mais apertado. Sempre a comparei a uma folha no Outono, leve e transparente. Na primeira vez que a visitei no lar quase não a reconheci – não estava sentada à chaminé, não vestia preto, não trazia lenço na cabeça. Foi o sorriso que ma mostrou. Ontem voltei lá e já não consegui vê-lo. Foi na 6ª que os avós me disseram que a avó Mariana estava muito doente. Deitada numa cama, deixou de abrir os olhos, mal come, mal fala, só se vê uma mancha pequenina debaixo dos lençóis com o coração a bater devagarinho. Ontem voltei lá e foi tão estranho. Reclamamos da morte quando vem de surpresa e nos leva aqueles de quem gostamos sem tempo para mais um beijo, mais um abraço, mais qualquer coisa que seja. E ontem ali estava eu, com esse tempo que tanto reclamei em outras vezes, a ter a minha despedida da avó Mariana. A senhora R., que toma conta dela e não a larga um instante, diz que Deus não deve tardar a levá-la, e para já não esperarmos melhoras. E eu sentei-me ao pé dela, dei-lhe um beijo, dei-lhe a mão que ela tentou apertar, alisei-lhe a cara e o cabelo, sempre igual, contei-lhe que vai ser bisavó mais uma vez – o tio Ma. vai ser pai, e lá lhe consegui arrancar algumas palavras a esforço. Faltam-lhe as forças para falar, os olhos já não abrem, o corpo dói-lhe todo quando lhe tocamos e parece mais pequenina do que nunca. Ontem despedi-me da avó Mariana. Agradeci-lhe as histórias, as festas, as tardes de conversa na chaminé dos avós, as bolachas na cozinha pequenina dela, o lembrar-se de mim até à última conversa, o gostar de mim como uma neta-de-coração ainda que o sangue o negasse, enquanto lhe segurava a mão e procurava decorar todos os traços do rosto dela. Nunca hei-de aceitar a bem a morte, quer se faça anunciar ou apareça sem eu dar conta, quer leve novos ou velhos. E agora aqui estou, com uma angústia no peito, um peso no coração. Despedi-me dela, talvez não a veja nunca mais, e no entanto ela ainda está ali, viva, com o coração a desistir de bater a cada minuto que passa. Ontem, quando vinha para Lisboa, vi uma estrela cadente. E o meu desejo foi para a avó Mariana. Que ela, a que eu não gosto nem entendo, venha então. Que a leve de mansinho, sem dor nem sofrimento, num sono descansado. Que tenha a senhora R. lá ao lado, a dar-lhe a mão como tem dado todas as noites, para que ela não tenha medo e sinta todo o amor que há à volta dela. Nesse momento, ela vai poder descansar então de tantos anos cheios, de tantas dores, de tantas outras coisas. E nós vamos poder então maldizer a morte, que nos leva quem gostamos, e chorar, já sem ver um coração pequenino e descompassado a bater-lhe no peito,  debaixo de uns lençóis cobertos de rosas. Mas esta espera, este lugar em que me encontro, eu e todos aqueles que conhecemos a avó Mariana, dói muito. E a morte, aqui tão perto, há-de dizer que nunca nos há-de entender, que não nos decidimos se preferimos só mais um bocadinho ou que ela nos roube tudo de uma vez só. E eu hei-de dar-lhe sempre a mesma resposta: também eu nunca te hei-de entender.

Quarta-feira, 14 de Setembro de 2011

.Contrastes

Ontem foi dia de voltar ao dentista. Contas feitas, tirei o aparelho há oito anos e há mais de dez que pisei aquele consultório pela primeira vez. Acordei cedo para poder ir de comboio, um dos meus pequenos prazeres. De iPod nos ouvidos até entrar na carruagem, e a alternar entre “A vida secreta das abelhas”, da biblioteca de Oeiras, e as vidas que iam ocupando os bancos à minha volta, segui até Entrecampos. Voltei a pôr o iPod e comecei a andar para o fundo – as torres cor-de-rosa eram já ali e a consulta era só às 10:30 – talvez me atendessem mais cedo, pensei. Foi quando vi um casal de velhotes a correr para o comboio, que já tinha fechado as portas e começava a andar nesse instante. Ele ia mais à frente, ela tentava apanhar os dois. Olhei para eles, para os ténis branquinhos nos pés dele – como aqueles que oferecemos nos anos ao avô há tanto tempo e que ele continua a usar como se fossem a coisa mais preciosa deste mundo, e não pude deixar de ver ali, neles, os meus avós. Deu-me tanta pena vê-los assim, a correr, a bater com a mão na porta sem que isso travasse o comboio, que comecei a chorar ali mesmo, enquanto andava. Não sei explicar bem porquê, só senti o coração apertado, e chorei. Chorei por eles. Chorei por mim. Pelos medos, inseguranças, dores, e pelo que o tempo faz. Chorei pelo pai, por vê-lo de muletas, por não lhe poder dar aquilo que merece. Chorei pela mãe, por não poder ajudar a transformar mesmo os sonhos mais pequeninos em realidade. Chorei pela mana, pelas doenças, doencinhas e doencitas que a incomodam sempre. Pelo trabalho que começa agora a procurar, pelo mestrado onde quer entrar. Chorei pela avó T., a ser operada ao olho naquele momento. Pela avó A., com medo que os maus entrem pela casa adentro sempre que está sozinha. Pelo avô Al., ao imaginá-lo orgulhoso no palco a acompanhar as cantadeiras com a gaita-de-beiços. Pelo avô X., que já não está connosco. Chorei pelo actor de Spartacus, que morreu esta semana com a doença do Tuto (chorei por ele também), a mesma que, com a quimioterapia, enfraquece a Ce. de dia para dia. Chorei pelo sr. J.P., a quem o coração quase trocou as voltas e pela Cr., que sofre por isso. Chorei pelo Z., enquanto o imaginava em outros braços a dançar a música que estava a ouvir no momento da mesma forma que o faz comigo. Chorei pela Lily, heroína do livro guardado na mala, que acabava de encontrar May sem vida. Dei por mim a chorar por este mundo e pelo outro, por mim e por todos os outros. Talvez fossem lágrimas acumuladas em tantos dias, que precisavam apenas da mínima faísca para saírem para fora. E o dique rebentou, ali na plataforma de Entrecampos, ao ver o desalento de dois velhotes que acabavam de perder o comboio. Continuei a andar, aumentei o som e esperei que as lágrimas secassem. Só vejo o meu dentista preferido uma vez por ano, não ia receber o “cara linda, cá estás tu outra vez” lavada em lágrimas. Esperei na sala por pouco tempo e entrei para uma repetição destes últimos anos. “Cara linda, cá estás tu outra vez. Sorri. Abre. Fecha. Trinca. Que curso tiraste tu? Jornalismo? Como é que foste para isso? E onde estás agora? Ah, pois é, já não me lembrava. Continuas perfeita, com um sorriso perfeito. Flúor de limão, mentol ou morango? Volta cá daqui a um ano. Gosto em ver-te, cara linda”. E eu saí com o meu melhor sorriso, sem pensar que o mesmo discurso estava já a ser repetido à menina que entrava. Olhei para as horas, 10:37. Corri até ao Campo Pequeno para comprar uma massinha para o almoço e cheguei à plataforma ao mesmo tempo que o comboio – 10:57. Corri, entrei sem saber bem como, percebi que não tinha validado o bilhete, voltei a sair e a entrar e foi quase por milagre que segui viagem. Ou não. Estava tão absorvida na leitura que nem dei conta das pessoas que iam entrando e saindo, nem dos meus companheiros de viagem. Foi só quando a minha paragem se aproximou, e me encaminhei para a porta, que os vi. Não eram os mesmos da manhã, era outro casal de velhotes. Tinham tantos, mas tantos sacos, que não consegui imaginar como tinham chegado até ali. Duas malas térmicas grandes, um saco daqueles enormes de supermercado cheio, e dois carrinhos de compras, um deles bem grande. Tirei os fones, arrumei tudo na mala e fui ter com eles, posso ajudar a levar os sacos? Que sim, que podia, muita obrigada, que talvez o elevador estivesse a funcionar e aí seria mais fácil. Levei-os até lá, e tentei certificar-me de que não precisavam mais de ajuda. Foram tão convincentes que acreditei que alguém estaria lá em baixo à espera deles. Foi só quando desci as escadas e me dirigia para a saída que os voltei a ver, sozinhos, a tentar equilibrar tudo aquilo. Fui a correr, deixe-me ajudá-la, para onde vão? “Deus lhe pague, para o táxi”, dizia-me. Agarrei em dois dos sacos e senti mais uma vez o peso de tudo aquilo – muito mais do que o que estava lá dentro. Isto é muito pesado para si. E ela agarrou-me o braço, que as dores mal a deixavam caminhar, que já tinha caído desamparada no Areeiro e o joelho, negro, aumentava de tamanho e impedia-a de continuar. Ajudei-os a entrar no táxi, com um condutor nada simpático. Ainda ousei pedir-lhe para os ajudar a descarregar tudo o que traziam de outras hortas quando chegassem ao destino, mas o ar dele de espanto não me deixou mais descansada. Acho que ainda nem me tinha despedido deles e já as lágrimas tinham voltado a cair. Pelo peso dos sacos, pelo joelho dorido, pela falta de alguém à espera deles. Por tudo e por nada, pelos males do meu mundo e do mundo dos outros. Segui para o carro, à espera para me levar até ao trabalho, debaixo de um sol que sufocava tanto quanto as lágrimas. Pensei em como estes dias têm sido de contrastes. Passei o domingo na praia, com o Z. e os pais, e não parámos de rir. Das piadas, da cesta da comida, do bronzeado manchado que apanharam os três. À noite, enquanto comíamos choco frito em Setúbal, fomos atacados por uma vaga de mosquitos que nos fez chorar a rir. Ficámos todos picados, mesmo depois de termos morto uns 20. Eu matei três só na testa do pai, o pai batia no Z., a mãe em mim e até derrubei um copo de coca-cola em cima de mim ao tentar acabar com um que me picava o braço. Mal conseguimos comer, entre picadas e gargalhadas, enquanto víamos as outras mesas também neste estranho ritual de agressão aos companheiros de refeição. E ali estava eu, depois de tanto riso, numa crise de choro pela segunda vez no mesmo dia.

Depois de sair do trabalho voltei a Lisboa de comboio. O Z., o Di. e a Ta. esperavam-me para um jantar no Lucca. E aí voltei a rir, muito. A celebrar a amizade, o amor, as coisas boas que a vida também me vai trazendo, regados a chá de jasmim com limão e canela. Liguei aos pais e aos avós, a tentar sossegar o temporal que me tinha apanhado durante o dia, e ainda ajudei a mana a fazer a carta de motivação para se candidatar ao mestrado antes de cair na cama. Adormeci a tentar equilibrar as emoções do dia, a tentar conciliar tantos contrastes. E, tenho a certeza – talvez por não ter mais lágrimas para gastar -, com um sorriso. Aquele que o meu dentista diz que é perfeito.

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