Hoje morreu um homem bom. Um homem de quem gosto muito e que sei que também gostava de mim (e da minha pequenita). Obrigada: pelos passeios que demos com o avô Chico, pelos pés descalços na sua horta, pelo colo que me dava enquanto eu comia arroz doce. Tenho saudades de o ver chegar todos os dias do trabalho, de o ver parar a carrinha ao lado da minha casa, e abrir o portão. Esta é a imagem que vou guardar – o aceno de mão na boina, o sorriso meigo. Foi consigo que aprendi a registar tudo o que se passa para nunca esquecer. Quis o destino, ou sei lá o quê, que, quase no fim, acabasse por esquecer tudo. Por aqui fica a lembrança e a saudade. Hoje morreu um homem bom – o vizinho António Rita.
Duas crianças morreram na sequência de um acidente numa Moto4. Uma criança morreu num incêndio na Damaia. O filho de uma conhecida jornalista morreu depois de um acidente numa piscina. A televisão no fim de semana a acabar com o meu coração de mãe. Esta noite a Aurora mamou 4 vezes – às 00:00, às 02:30, às 04:30 e às 07:30. Talvez também esteja ansiosa com a ida para o colégio, amanhã, não sei. Eu agradeci. Foi tão bom ter uma desculpa para agarrá-la mais tempo, sentir o seu corpinho quente, o cheirinho bom do cabelo dela, as festinhas que me vai dando com a mão de um lado para o outro. Depois dar-lhe um beijinho na bochecha ainda com leite e voltar a deitá-la, enquanto agradeço, tantas vezes, por tê-la na minha vida e peço que nunca nada de mal lhe aconteça. Sempre fui pessimista e sofri por antecipação, mas agora, desde que fui mãe, tudo me parece muito mais negro (e mais feliz, ao mesmo tempo). Digo aos meus pais que não sei como me deram tanta liberdade, que penso seriamente em fechar a Aurora no quarto para que nada de mal lhe aconteça, mas sei que tenho de aprender a gerir os meus medos, inseguranças, e que ela também terá de ter espaço para viver (e sim, nos quartos também acontecem coisas más, eu sei). Mas este lugar onde agora me encontro, mãe, eu-mãe, faz-me sofrer até pelas dores dos outros. Nos últimos tempos uma série de pessoas à minha volta sofreu mais do que devia num momento da vida que devia ser de extrema felicidade – o parto. Sofreram as mães, os pais, os bebés. Uns já recuperaram, outro não se sabe se ficará com algum problema, outro acabou por falecer. Nesse dia, em que soube desta última história, chorei e agarrei tanto a minha filha. E o Z. ralhou muito comigo, que não posso ser assim. Mas não consigo deixar de questionar o mundo, a vida, tudo o que acontece. Quem sou eu para ter tido a sorte de ter um parto bom, num bom hospital, sem sofrimento para nós nem para ela? O que tenho eu a mais? Porque tenho eu a sorte de ter a minha filha bem nos braços e outros pais não? Que mal fizeram todos os outros pais para que lhes tirem assim os seus filhos? Ainda vou ser penalizada por esta sorte? Ser mãe é viver com o coração fora do corpo, digo eu e todas as mães (menos aquelas que os tentam vender – mais uma notícia que me faz questionar o mundo). E quando esse coração pára de bater, como é que se continua a viver? Espero nunca ter de o saber. Dói tanto, tanto, só de o ver acontecer aos outros. E nunca me esqueço que nós somos os outros dos outros.
Assim que começaram a aparecer melancias nos supermercados, mal tinha começado o Verão, fiquei cheia de vontade de comer uma bem fresquinha. Estávamos a fazer as compras perto de casa e partilhei a minha vontade com o Z., enquanto olhava para as metades vermelhinhas já expostas. E ele, forreta de primeira, sai-se com esta: “não vamos levar isso, já viste o preço?, nem pensar nisso, depois os meus pais têm lá na horta e comes à vontade”. Claro que não lhe dei ouvidos, tinha tanta, mas tanta vontade e saudades de uma boa melancia que lá consegui juntar uma metade ao cesto das compras. Chegámos a casa e, antes de fazer o jantar, resolvi parti-la toda aos bocadinhos numa tacinha e pô-la na sala. Quando voltei, já com o jantar pronto, não havia nem um bocadinho para amostra. Então, o que é aconteceu? Ainda me passou pela cabeça que ele ma tivesse escondido, mas não, sem se aperceber tinha comido mesmo tudo – nem cheguei a provar. Mas, a verdade, é que o rapaz tinha razão: não me faltaram melancias durante todo o Verão. Estamos a entrar em Outubro e a horta dos pais ainda a dar. Temos trazido quilos e quilos delas, que transformamos em sumo na Bimby. Na semana passada não trouxemos, porque ainda tínhamos duas em casa, mas, azar-azarinho, por estarem ali há algum tempo, já não estavam muito boas e tivemos de fazer aquilo que menos gostamos, deitar tudo fora. E lá fiquei eu com vontade de comer melancia outra vez. Ontem voltámos ao supermercado e quando tentávamos decidir que fruta levar para casa partilhei a minha vontade com ele, que deu uma gargalhada do tipo nem-penses-nisso-só-podes-estar-a-brincar. Achámos melhor dar uma voltinha para comprar os outros itens da lista enquanto decidíamos. Tínhamos voltado àquela secção quando o telefone tocou, era a mãe. Sei que quando me liga fora de horas nunca tem boas notícias e confirmou-se, a avó Mariana tinha falecido há poucas horas. Fiquei ali, no meio da fruta, a encaixar o golpe de realidade, a conter as lágrimas, e o Z. só me disse: “Se te faz feliz, levamos melancia”, e passou-me uma metade vermelhinha para as mãos. Naquele momento, foi mesmo o melhor que eu podia ouvir e foi a única coisa que me fez sorrir. Esqueceu os argumentos dele, engoliu as palavras tantas vezes ocas que se dizem nestas alturas, e só se preocupou em ver-me feliz. Percebi, mais uma vez, que o valor dos gestos (de amor) não está no tamanho, na forma, nem no sítio. É só preciso amor. E pode bem ter a forma de uma melancia. [Obrigada]
Sempre a conheci como a avó velhinha, nunca por bisavó. Tem um nome bonito, escolhido há já 91 anos, Mariana, mas todos a tratamos assim. Ficou viúva muito cedo, com sete filhos, depois de ter casado aos 17 anos. O avô Al. foi o primeiro a chegar. Morou sempre naquela casa pequenina, depois de V.N., ao lado de uma das filhas. Lembro-me de ir lá com os avós e nunca ter passado da cozinha. Sentava-me nas cadeiras encostadas à parede, ao lado dos armários cheios de pratos antigos, e via a mesa no meio, sempre sem pó, sempre cheia de fotografias a preto e branco de pessoas que nunca cheguei a conhecer, e uma caixinha de bolachas que abria para nós. Só a idade a obrigou a sair de lá. A avó Mariana é muito pequenina e magrinha. Tanto que cheguei a ter medo de a partir sempre que lhe dava um abraço mais apertado. Sempre a comparei a uma folha no Outono, leve e transparente. Na primeira vez que a visitei no lar quase não a reconheci – não estava sentada à chaminé, não vestia preto, não trazia lenço na cabeça. Foi o sorriso que ma mostrou. Ontem voltei lá e já não consegui vê-lo. Foi na 6ª que os avós me disseram que a avó Mariana estava muito doente. Deitada numa cama, deixou de abrir os olhos, mal come, mal fala, só se vê uma mancha pequenina debaixo dos lençóis com o coração a bater devagarinho. Ontem voltei lá e foi tão estranho. Reclamamos da morte quando vem de surpresa e nos leva aqueles de quem gostamos sem tempo para mais um beijo, mais um abraço, mais qualquer coisa que seja. E ontem ali estava eu, com esse tempo que tanto reclamei em outras vezes, a ter a minha despedida da avó Mariana. A senhora R., que toma conta dela e não a larga um instante, diz que Deus não deve tardar a levá-la, e para já não esperarmos melhoras. E eu sentei-me ao pé dela, dei-lhe um beijo, dei-lhe a mão que ela tentou apertar, alisei-lhe a cara e o cabelo, sempre igual, contei-lhe que vai ser bisavó mais uma vez – o tio Ma. vai ser pai, e lá lhe consegui arrancar algumas palavras a esforço. Faltam-lhe as forças para falar, os olhos já não abrem, o corpo dói-lhe todo quando lhe tocamos e parece mais pequenina do que nunca. Ontem despedi-me da avó Mariana. Agradeci-lhe as histórias, as festas, as tardes de conversa na chaminé dos avós, as bolachas na cozinha pequenina dela, o lembrar-se de mim até à última conversa, o gostar de mim como uma neta-de-coração ainda que o sangue o negasse, enquanto lhe segurava a mão e procurava decorar todos os traços do rosto dela. Nunca hei-de aceitar a bem a morte, quer se faça anunciar ou apareça sem eu dar conta, quer leve novos ou velhos. E agora aqui estou, com uma angústia no peito, um peso no coração. Despedi-me dela, talvez não a veja nunca mais, e no entanto ela ainda está ali, viva, com o coração a desistir de bater a cada minuto que passa. Ontem, quando vinha para Lisboa, vi uma estrela cadente. E o meu desejo foi para a avó Mariana. Que ela, a que eu não gosto nem entendo, venha então. Que a leve de mansinho, sem dor nem sofrimento, num sono descansado. Que tenha a senhora R. lá ao lado, a dar-lhe a mão como tem dado todas as noites, para que ela não tenha medo e sinta todo o amor que há à volta dela. Nesse momento, ela vai poder descansar então de tantos anos cheios, de tantas dores, de tantas outras coisas. E nós vamos poder então maldizer a morte, que nos leva quem gostamos, e chorar, já sem ver um coração pequenino e descompassado a bater-lhe no peito, debaixo de uns lençóis cobertos de rosas. Mas esta espera, este lugar em que me encontro, eu e todos aqueles que conhecemos a avó Mariana, dói muito. E a morte, aqui tão perto, há-de dizer que nunca nos há-de entender, que não nos decidimos se preferimos só mais um bocadinho ou que ela nos roube tudo de uma vez só. E eu hei-de dar-lhe sempre a mesma resposta: também eu nunca te hei-de entender.
Na noite de sábado sonhei contigo. Estava num hospital, perto de Belém, com vista para o monumento aos combatentes do Ultramar – não me perguntes porquê. Sei-o porque era a vista da janela do corredor por onde passei muitas vezes, sempre à tua procura. Corri todos os cantos do hospital, e nada de ti. Perguntava a toda a gente, corria, entrava em todas as portas. Até te encontrar. Estavas de pé, encostado à cama, à minha espera, com uma t-shirt verde que sei não ser tua – nos sonhos baralho tudo, misturo tudo, vou buscar tudo. Era a t-shirt que o Z. levava no dia da viagem. Disseste-me: “Precisas mesmo de falar comigo, não é? Procuraste-me tanto”. Abriste-me os braços e eu encaixei-me neles, enquanto as lágrimas caíam antes mesmo de eu pestanejar – mesmo como nos últimos dias, como hoje. E falámos.
Hoje, a caminho de Lisboa, decidi parar no cemitério. Não me lembro nunca de ter entrado num sozinha. Não senti medo, só que precisava mesmo de ir ali. Estive lá uns dez minutos. Vi a placa nova, onde colocaram “Tuto” – mas alguém te tratava por Augusto?, pensei. Nem os professores o faziam. Vi as datas marcadas a dourado – quatro anos, já passaram quatro anos desde que saíste daqui. Fiquei ali, de pé, a intervalar as lágrimas com as rezas até acalmar. E falámos.
Já estava de saída quando ouvi “Menina, menina”. Confesso que me assustei, ia jurar que mais ninguém estava ali. Já devia ter mais de 70 anos, e estava de pé, em cima de uma das campas altas, a lavar o mármore, que o tempo escureceu, com um pincel e lixívia. Pensei que quisesse ajuda para descer – nem percebi como é que ela tinha conseguido subir. “Pode trazer-me este baldinho com água? É que se eu for buscar depois já não consigo subir”. Explicou-me onde era e fui lá. Quando lho entreguei, agarrou-me as mãos com força e, enquanto dizia “Deus lhe pague menina”, começou a chorar. E eu chorei com ela, já sem saber bem porquê. Uma vez mais. Depois entrei no carro e segui para o trabalho. E falámos.
Se há coisa que mexe comigo é a morte. Não necessariamente a minha, muito mais a dos outros. Ontem, quando ia a caminho de um concerto de gala, a mãe ligou com uma má notícia. Tinha um morrido um senhor nosso conhecido, que trabalhava para um grande amigo nosso, e que era pai de um antigo colega de turma da mana. Ia num carro atrás desse amigo, que deixou de o ver, voltou para trás, e quando o encontrou contra um sobreiro já nada se podia fazer. Liguei para a mana na tentativa de afugentar os fantasmas. E depois tentei abstrair-me, mas não consegui. A música era boa, a companhia ainda melhor, as conversas dos bancos de trás davam para rir, as gargalhadas vinham de todos os lados. Mas não chegava. O meu pensamento andava por lá. Pelo acidente sem marcas de travão, pela cabeça de quem teve de dar a notícia à família, pela estrada onde passamos tantas vezes, pelos três filhos que perderam o pai sem que nada o fizesse prever. A morte custa sempre, ainda que seja esperada. O avô X. teve um cancro durante vinte anos, foi operado mais de dez vezes, teve um mamilo na bochecha, um tubo na garganta, despediu-se de mim numa conversa bem planeada, e, ainda assim, foi com surpresa que o vimos desistir do sofrimento enquanto esperava por mais um bocadinho de oxigénio. Apanha-nos sempre desprevenidos, surpreende-nos sempre, mesmo quando nos vai alertando. Achamos sempre que conseguimos adiá-la, vencê-la, nem que seja só por mais uns instantes. No que iria a pensar? No jantar à espera em casa? No beijo de boas-vindas? No programa que queria ver na televisão nessa noite? No trabalho que o esperava no próximo dia? E lá em casa, esperavam-no com a certeza de todos os dias? É nestas coisas que fico a pensar. São estes momentos por viver que ficam às voltas na minha cabeça, sem vidas aonde se possam agarrar lá fora, porque a morte os veio surpreender. É isto que me deixa em alerta, sempre atenta, sempre à espera. Sempre a correr para mais uma visita, mais um beijo, mais qualquer coisa para guardar que um dia me permita enfrentá-la mais forte. Se é que isso é possível. Acho que não. Mas é assim. Vai ser sempre assim. Vai vir sempre. Vai surpreender sempre. "O que eu vos quero dizer é que vamos todos falecer"*.
*Diário de Notícias online - Alunos de Medicina aprendem importância do humor
Tenho boa memória. Às vezes deixo a mãe de boca aberta com a quantidade de detalhes que fixei na memória de dias que de tão velhos quase esquecemos que existiram. Talvez os recorde assim porque são muitos – os meus dias sempre tiveram muitos detalhes.
A nossa casa tem muitas casas. Quem chega ali, vê um L. que começa na dispensa da avó, à esquerda, e termina no primeiro andar da nossa casa. Vêem seis janelas, cinco portas, uma rede que em tempos disse Casa Silva. Eu vejo a casa da avó, depois a loja, depois a padaria, a arrecadação da loja e a nossa casa. Todas juntas, num L. como eu. Em tempos o nosso L. albergou mais alguém. O Cerca e a sua barbearia. A porta sempre aberta, lá na outra ponta, era um dos meus poisos mais certos. Quando os pais não sabiam de mim, das duas uma (ou três, como diz o meu Az.), ou estava nas vizinhas, ou na barbearia. A meter conversa com os clientes, a falar da vida com o Cerca, a experimentar todos os seus instrumentos onde conseguia deitar a mão ou à roda – quando estávamos só eu e ele, sentava-me na cadeira, gigante para mim, e rodava até mais não. Era uma barbearia muito simples, muito pequenina. As paredes que não deixavam perceber se eram verdes ou azuis, a cadeira de costas para a entrada, o espelho ao fundo, com o balcão para a navalha, as espumas, os pentes; os bancos encostados às paredes, os calendários nem sempre recomendáveis e que me suscitavam muitas perguntas. Ali sabia as novidades, aprendia os truques para as patilhas ficarem direitas e como segurar a navalha para não cortar ninguém. Ali aprendi as minhas primeiras asneiras e soube que o meu avô não era o pai da minha mãe.
Um dia, a nossa casa ficou pequena para todas as nossas tralhas e foi preciso acrescentá-la. E nasceu a nossa dispensa, agora da avó, onde a mãe podia passar a ferro e guardar tudo no armário de parede a parede. Nasceu onde antes era a barbearia. O Cerca saiu e levou com ele todas aquelas tralhas, todos os pentes que eu prendia nos meus caracóis, os cremes que tentava por meus nos braços que achava peludos de mais, os clientes com as suas notícias, o banco com o jornal onde eu tentava ler, e ele, a minha companhia de tantos dias. Mudou-se para outra casa e prometemos muitas visitas, que não cumprimos muito.
O Cerca chamava-me L.-ita, como os meus avós. E eu deixava, porque gostava dele. Assim que via o meu pai ou a minha mãe parava a carrinha e perguntava por mim. Às vezes mais do que uma vez por dia. E quando me apanhava, parava em qualquer lado, agarrava-me pelos ombros, e soltava a ladainha: “Ai, L.-ita, L.-ita, lembras-te de não sei do quê? O que a gente fez naquele dia? E quando tu dizias aquilo? Lembras-te? E quando o teu avô te apanhou a ler tão pequenina? Ai, L.-ita, L-ita, sempre o mesmo sorriso malandro e o mesmo brilho nos olhos”.
No fim-de-semana a mãe ligou-me fora de horas. E eu tremo, porque sei que raramente é bom sinal. O Cerca tinha falecido. “Sentiu-se mal, foi às urgências, mandaram-no para casa e morreu”, e continuou, “estes médicos agora querem lá saber, querem é que a gente morra, nem prestam atenção aos detalhes”.
Apareci no Alentejo de surpresa. Para uma ida à piscina da minha M., um mergulho em Tróia, uns miminhos dos papás que já me faltavam. No sábado à tarde, o pai chegou moreno e carregado do terceiro dia da cortiça. Sentou-se no sofá de verga, por baixo da janela da cozinha e prendeu a cabeça entre as mãos, de cotovelos nos joelhos. “Onde é que eu agora vou cortar o cabelo? Ainda no fim-de-semana passado lá estive! Levava-me só 6€ e eu até deixava mais”, dizia. E eu não pude deixar de sorrir. Tendemos a ver os nossos pais a roçar a perfeição e ali estava eu a ver que o meu pai também é homem. Também tem aquela dificuldade em conjugar as palavras com os sentimentos, em dizer o que lhe vai na alma sem medos. Tenho a certeza que queria dizer que gostava muito do Cerca, que vai sentir saudades, que é mais um amigo que perdeu, que é mais um momento do mês que vai ter de cortar da agenda. Mas achei que não devia contrariá-lo. Abracei-o com força, dei-lhe um beijinho por cima do boné quente do sol e disse-lhe ao ouvido: “Aqui nesta casa, todas preferimos vê-lo com o cabelo grande e os caracóis no ar”. E fiquei a olhar para os detalhes, para o xadrez das almofadas, os buracos ainda com luz da persiana, o correio amontoado na mesa ao lado da cesta da fruta, as patilhas do pai tão direitinhas. “É tão fácil L.-ita, não tenho truque nenhum! Mas é pelos detalhes que eles cá voltam”, ouvia dizer o Cerca na minha cabeça, enquanto o tentava tirar da lista das pessoas que espero sempre encontrar ao fim-de-semana e passá-lo para o canto do coração onde vou alojando aqueles que já só posso ver nas minhas recordações, nas minhas saudades, nos detalhes dos meus dias passados.
Lá fora: "És só alguém sem o depois, mentaliza-te disso"
Victor Ruiz Caballero - Reuters
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