Há teorias que vou ouvindo por aí e que me fazem tanto sentido que resolvo agarrá-las para mim também - mas a referência à fonte nunca é esquecida. Esta pertence à Ve.-do-cabelo-curto – que agora já é comprido, ou do-piercing. Tinha de a tratar assim por existirem duas Ve. na minha vida, e nem sempre as pessoas percebiam de quem estava eu a falar. Esta Ve., a do-piercing (a outra já falei dela aqui), sempre teve umas teorias muito engraçadas. O tempo foi apagando muitas delas, já não falamos tanto quanto gostaria, e já vão longe os tempos em que partilhávamos as mesmas salas de aulas no secundário. Ficou-me esta: “Mais vale mal acompanhada do que sozinha. Não há nada pior do que solidão”. Eu estou habituada a pessoas. Desde que nasci que ia para a loja assim que acordava, que fazia sestas entre as voltas da farinha ou do pão, que aprendi a estudar no meio do barulho por não gostar do silêncio, que ligo a televisão ou o rádio assim que chego a uma casa vazia, que detesto estar sozinha, que faço tudo por uma companhia e chego a dormir de luz acesa quando não há mais ninguém em casa. Encaixei-me nas palavras dela, vi que estava certa. Mas a mãe sempre me disse “todos precisamos do nosso espaço e da nossa solidão”. E talvez tenha chegado a minha hora de o perceber. Esta semana estou a fazer um horário que me permite sair às 15:30. Assim que posso, entro no carro e sigo, sozinha, até à praia mais perto do trabalho, em Paço de Arcos. Já gostei muito de praia, já gostei pouco, e este ano dei por mim a sentir mesmo falta dela, talvez por não ter podido ir tantas vezes. Como companhia levo apenas a toalha, o iPod e o livro do Haruki, a quem abri a porta mais uma vez. O ritual tem sido o mesmo todos os dias: chego, estendo a toalha, corro para um banho capaz de refrescar até os pensamentos mais negros, e depois volto à areia, para alternar entre a leitura, a música, os pensamentos soltos e as pessoas que me rodeiam. Ali, perdida na areia, tenho descoberto o prazer de estar sozinha. E hoje, enquanto espero ansiosamente pela hora de saída para repetir todos estes passos, penso em como meter conversa com a Ve.-do-piercing. Quero dizer-lhe que me lembrei dela, que tenho saudades da boa disposição que trazia todos os dias, das férias sem pais no Algarve e dos tempos que partilhámos juntas. E que, às vezes - talvez mesmo só às vezes, a teoria dela está errada. Às vezes - talvez mesmo só às vezes, estar sozinha é muito melhor do que estar mal acompanhada.
Ontem foi dia de voltar ao dentista. Contas feitas, tirei o aparelho há oito anos e há mais de dez que pisei aquele consultório pela primeira vez. Acordei cedo para poder ir de comboio, um dos meus pequenos prazeres. De iPod nos ouvidos até entrar na carruagem, e a alternar entre “A vida secreta das abelhas”, da biblioteca de Oeiras, e as vidas que iam ocupando os bancos à minha volta, segui até Entrecampos. Voltei a pôr o iPod e comecei a andar para o fundo – as torres cor-de-rosa eram já ali e a consulta era só às 10:30 – talvez me atendessem mais cedo, pensei. Foi quando vi um casal de velhotes a correr para o comboio, que já tinha fechado as portas e começava a andar nesse instante. Ele ia mais à frente, ela tentava apanhar os dois. Olhei para eles, para os ténis branquinhos nos pés dele – como aqueles que oferecemos nos anos ao avô há tanto tempo e que ele continua a usar como se fossem a coisa mais preciosa deste mundo, e não pude deixar de ver ali, neles, os meus avós. Deu-me tanta pena vê-los assim, a correr, a bater com a mão na porta sem que isso travasse o comboio, que comecei a chorar ali mesmo, enquanto andava. Não sei explicar bem porquê, só senti o coração apertado, e chorei. Chorei por eles. Chorei por mim. Pelos medos, inseguranças, dores, e pelo que o tempo faz. Chorei pelo pai, por vê-lo de muletas, por não lhe poder dar aquilo que merece. Chorei pela mãe, por não poder ajudar a transformar mesmo os sonhos mais pequeninos em realidade. Chorei pela mana, pelas doenças, doencinhas e doencitas que a incomodam sempre. Pelo trabalho que começa agora a procurar, pelo mestrado onde quer entrar. Chorei pela avó T., a ser operada ao olho naquele momento. Pela avó A., com medo que os maus entrem pela casa adentro sempre que está sozinha. Pelo avô Al., ao imaginá-lo orgulhoso no palco a acompanhar as cantadeiras com a gaita-de-beiços. Pelo avô X., que já não está connosco. Chorei pelo actor de Spartacus, que morreu esta semana com a doença do Tuto (chorei por ele também), a mesma que, com a quimioterapia, enfraquece a Ce. de dia para dia. Chorei pelo sr. J.P., a quem o coração quase trocou as voltas e pela Cr., que sofre por isso. Chorei pelo Z., enquanto o imaginava em outros braços a dançar a música que estava a ouvir no momento da mesma forma que o faz comigo. Chorei pela Lily, heroína do livro guardado na mala, que acabava de encontrar May sem vida. Dei por mim a chorar por este mundo e pelo outro, por mim e por todos os outros. Talvez fossem lágrimas acumuladas em tantos dias, que precisavam apenas da mínima faísca para saírem para fora. E o dique rebentou, ali na plataforma de Entrecampos, ao ver o desalento de dois velhotes que acabavam de perder o comboio. Continuei a andar, aumentei o som e esperei que as lágrimas secassem. Só vejo o meu dentista preferido uma vez por ano, não ia receber o “cara linda, cá estás tu outra vez” lavada em lágrimas. Esperei na sala por pouco tempo e entrei para uma repetição destes últimos anos. “Cara linda, cá estás tu outra vez. Sorri. Abre. Fecha. Trinca. Que curso tiraste tu? Jornalismo? Como é que foste para isso? E onde estás agora? Ah, pois é, já não me lembrava. Continuas perfeita, com um sorriso perfeito. Flúor de limão, mentol ou morango? Volta cá daqui a um ano. Gosto em ver-te, cara linda”. E eu saí com o meu melhor sorriso, sem pensar que o mesmo discurso estava já a ser repetido à menina que entrava. Olhei para as horas, 10:37. Corri até ao Campo Pequeno para comprar uma massinha para o almoço e cheguei à plataforma ao mesmo tempo que o comboio – 10:57. Corri, entrei sem saber bem como, percebi que não tinha validado o bilhete, voltei a sair e a entrar e foi quase por milagre que segui viagem. Ou não. Estava tão absorvida na leitura que nem dei conta das pessoas que iam entrando e saindo, nem dos meus companheiros de viagem. Foi só quando a minha paragem se aproximou, e me encaminhei para a porta, que os vi. Não eram os mesmos da manhã, era outro casal de velhotes. Tinham tantos, mas tantos sacos, que não consegui imaginar como tinham chegado até ali. Duas malas térmicas grandes, um saco daqueles enormes de supermercado cheio, e dois carrinhos de compras, um deles bem grande. Tirei os fones, arrumei tudo na mala e fui ter com eles, posso ajudar a levar os sacos? Que sim, que podia, muita obrigada, que talvez o elevador estivesse a funcionar e aí seria mais fácil. Levei-os até lá, e tentei certificar-me de que não precisavam mais de ajuda. Foram tão convincentes que acreditei que alguém estaria lá em baixo à espera deles. Foi só quando desci as escadas e me dirigia para a saída que os voltei a ver, sozinhos, a tentar equilibrar tudo aquilo. Fui a correr, deixe-me ajudá-la, para onde vão? “Deus lhe pague, para o táxi”, dizia-me. Agarrei em dois dos sacos e senti mais uma vez o peso de tudo aquilo – muito mais do que o que estava lá dentro. Isto é muito pesado para si. E ela agarrou-me o braço, que as dores mal a deixavam caminhar, que já tinha caído desamparada no Areeiro e o joelho, negro, aumentava de tamanho e impedia-a de continuar. Ajudei-os a entrar no táxi, com um condutor nada simpático. Ainda ousei pedir-lhe para os ajudar a descarregar tudo o que traziam de outras hortas quando chegassem ao destino, mas o ar dele de espanto não me deixou mais descansada. Acho que ainda nem me tinha despedido deles e já as lágrimas tinham voltado a cair. Pelo peso dos sacos, pelo joelho dorido, pela falta de alguém à espera deles. Por tudo e por nada, pelos males do meu mundo e do mundo dos outros. Segui para o carro, à espera para me levar até ao trabalho, debaixo de um sol que sufocava tanto quanto as lágrimas. Pensei em como estes dias têm sido de contrastes. Passei o domingo na praia, com o Z. e os pais, e não parámos de rir. Das piadas, da cesta da comida, do bronzeado manchado que apanharam os três. À noite, enquanto comíamos choco frito em Setúbal, fomos atacados por uma vaga de mosquitos que nos fez chorar a rir. Ficámos todos picados, mesmo depois de termos morto uns 20. Eu matei três só na testa do pai, o pai batia no Z., a mãe em mim e até derrubei um copo de coca-cola em cima de mim ao tentar acabar com um que me picava o braço. Mal conseguimos comer, entre picadas e gargalhadas, enquanto víamos as outras mesas também neste estranho ritual de agressão aos companheiros de refeição. E ali estava eu, depois de tanto riso, numa crise de choro pela segunda vez no mesmo dia.
Depois de sair do trabalho voltei a Lisboa de comboio. O Z., o Di. e a Ta. esperavam-me para um jantar no Lucca. E aí voltei a rir, muito. A celebrar a amizade, o amor, as coisas boas que a vida também me vai trazendo, regados a chá de jasmim com limão e canela. Liguei aos pais e aos avós, a tentar sossegar o temporal que me tinha apanhado durante o dia, e ainda ajudei a mana a fazer a carta de motivação para se candidatar ao mestrado antes de cair na cama. Adormeci a tentar equilibrar as emoções do dia, a tentar conciliar tantos contrastes. E, tenho a certeza – talvez por não ter mais lágrimas para gastar -, com um sorriso. Aquele que o meu dentista diz que é perfeito.
Durante muito tempo o meu estado no email resumia-se a “Diz que tenho sal”. E foram muitas vezes que me perguntaram o significado daquilo. A frase foi copiada de uma música dos Perfume. Achei que fazia todo o sentido. Quando era mais pequena, numas férias de Verão, li o livro "Leandro, Rei da Helíria", de Alice Vieira, e foi só aí, nas palavras de Violeta, que definiu o amor ao pai assim "– Preciso tanto de vós… como a comida precisa do sal", que percebi a importância do sal. Talvez agora, nesta nova fase, tenha percebido ainda mais. O sal é essencial. Tê-lo, vê-lo, senti-lo, percebê-lo, doseá-lo, usá-lo. Que alguém reconheça o nosso, que perceba que em nós há alguma coisa que pode dar mais sabor aos dias que vêm um atrás do outro, é tão bom. Que o digam é ainda melhor.
Hoje estou assim, outra vez, copiona.
“Aqueles que não têm paixões fortes estão condenados a uma vida sem sal
por Francesco Alberoni (Jornalista e sociólogo), Publicado em 14 de Setembro de 2010 | Jornal i
A mudança, a inovação, a criação amadurecem sempre e necessariamente no sofrimento, no desconforto, na solidão
A criatividade e o poder inventivo passam sempre por períodos de crise, durante os quais questionamos tudo, até nós próprios. No recente filme de Aronofsky, "The Black Swan" ("O Cisne Negro"), a bailarina é tecnicamente perfeita, mas para atingir a verdadeira perfeição tem de viver uma crise profunda, sair de si, enfrentar o sofrimento, morrer e renascer.
Na realidade, todos nós enfrentamos esse problema desde a infância, quando a professora nos questiona. Muitos pedagogos são contra os exames de avaliação porque dizem que estes causam traumas. E é verdade que os provocam, porém, são também imprescindíveis - desde logo porque nos levam a questionar o que queremos para nós e a tomar consciência daquilo que fazemos.
Mas há aquele tipo de pessoas que durante o decorrer da sua vida não alteram a sua forma de pensar, a sua maneira de sentir, por vezes nem mesmo mudam de emprego. Vivem uma vida prudente, onde tudo o que acontece está absolutamente controlado, sem riscos e sem imaginação, na qual a necessidade de emoção e de paixão são satisfeitas apenas pela música que ouvem na discoteca ou pelo que fazem quando se juntam às suas claques desportivas.
Este tipo de pessoas, façam o que quer que façam - o funcionário vulgar, o filósofo, o político -, não conseguem criar ou inventar nada.
A mudança, a inovação, a criação amadurecem sempre e necessariamente no sofrimento, no desconforto, na solidão. A rapariga que não suporta viver no pequeno país onde se sente uma prisioneira, em determinada altura rebela-se, foge, deita tudo ao ar e arrisca-se a ser destruída. Mas só escolhe o risco porque sabe que através dele pode renascer.
O cientista que segue um caminho totalmente novo e consegue destacar-se dos outros é por eles ridicularizado e só depois de muitos anos os vê admitir que afinal tinha razão. Da mesma forma que o líder político ou religioso que cria um movimento suficientemente forte para ser capaz de conferir aos que o seguem a força para se rebelarem, assim como dignidade e objectivos começa sempre por ser ridicularizado. Mas só será capaz de o fazer se esse desespero, essa ruptura, essa revolta tiver começado dentro de si próprio.
As biografias dos grandes homens da história deixa-nos muitas vezes chocados porque nelas encontramos alterações imprevisíveis de personalidade que parecem tocadas de loucura.
A determinada altura, Newton cansou-se da física e decidiu dedicar-se à astrologia e sair em perseguição dos burlões de ocasião. Galileu, que sempre foi um rebelde, provocou deliberadamente todos os antigos e tudo quanto estava instituído ao escrever o "Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo". Goethe, Lawrence e Nabokov deixaram os amigos desconcertados ao escreverem obras revolucionárias muito tardiamente, mesmo antes de morrerem, como uma espécie de libertação final nas inibições que os prendiam.”
"Às vezes penso que o coração das pessoas é como um poço sem fundo. Ninguém sabe o que se encontra no seu interior. Não temos outro remédio senão dar largas à nossa imaginação a partir do que aparece, volta e meia, à tona." - A rapariga que inventou um sonho, Haruki Murakami
O Sr. Murakami, companheiro dos espaços vazios dos últimos dias, a resumir tudo o que não consigo.
Não tenho lido muito. E não se pode dizer que tenha sido por falta de vontade. Simplesmente não tenho encontrado muitos livros que me prendam. E, depois, também não ando com disponibilidade financeira para me dedicar a este vício. Foi, por isso - e por achar que tinha a ver comigo, que a M. me emprestou um livro. “Kafka à beira mar”, de Haruki Murakami. Que devorei rapidamente nas minhas viagens de comboio. Há muito que um livro não me prendia daquela maneira. Nunca tinha visto realidade e fantasia misturadas de uma maneira tão natural. Nada parecia ridículo nem forçado. Falar com gatos ou encontrar o senhor do KFC no meio da rua, soava-me, nas palavras dele, tão natural quanto lê-lo. No Natal, a I. surpreendeu-me com “Passageiros da noite”. E, uma vez mais, o mundo de Haruki sabia-me a uma realidade possível. Aquele quarto vigiado, onde uma Bela Adormecida alternava entre a cama e o interior de uma televisão, fazia todo o sentido. Nada de surreal existia ali.
Já terminei de ler "Sapatos de Rebuçado". E escrevo-o de sorriso na cara. Quando o comecei a ler (Dezembro...?), quase pensei que Joanne Harris tinha perdido o dom de me enfeitiçar e prender como ninguém. Acabei por o ir abandonando... Nas mesas-de-cabeceira por onde passei, nas malas que usei, em gavetas que não abria... Até que pensei "não, não pode ser". E trouxe-o novamente para os meus dias com um sentimento de obrigação e quase vergonha. E não sei a partir de que momento me apaixonei. A partir de que momento me transformei em Anouk e nas suas esperanças. Em Zozie e nas suas artimanhas. Em Vianne e nos seus medos. Viciei-me, uma vez mais, nas canecas de chocolate com vagem de baunilha e uma pitada de noz-moscada. Em mendiants du roi. Nas ruas de Paris. E em magia. Cheguei a casa, atirei-me para cima da cama, ainda com botas e sem lanche, e ali fiquei até terminar de beber de todas aquelas páginas... de todas aquelas vidas que, como sempre, quase vou vivendo como minhas e imagino paradas, a reclamar a minha atenção, enquanto ouso fechar o livro por instantes.
Já terminei. E, por uma vez mais, acabo por perceber que não deixo de transportar sempre qualquer coisa para a minha vida. Tantas coisas, desta vez. Vidas, viagens, ventos, sonhos, receios, bem e mal, chocolate, cheiros, magia. E Acidentes. Nada de bom acontece sem que o mal logo apareça para equilibrar esta estranha balança. O vento não deixa ninguém ficar sem levar alguém no seu lugar. Acidentes. Trata-se de equilíbrio, apenas isso.
Na quinta consegui, finalmente, encontrar o Carlitos na net. Matar saudades. Contar novidades. Voltar ao chinês. E ao cinema. E esperá-lo, enquanto comia duas bolas de gelado de chocolate belga.
Na sexta almocei à beira mar. Comprei e recebi vestidos da minha vida. Vi o pôr do sol a bordo de um catamarã no Tejo, rodeada das pessoas de quem mais gosto. E dormi na minha (nossa) casinha, depois de ter levado todas as minhas tralhas para lá .
No sábado acordei cedinho. Fiz a mala e fui levada. A Coimbra, à Curia... Não consigo deixar de ficar feliz só de pensar em ir lá. Vi a senhora antipática e de nariz de porco da papelaria, a senhora brasileira simpática do restaurante onde vamos sempre (que me deu uma bola gigante de gelado de banana), os amigos da avó que penduram a roupa até não deixar nem um bocadinho da montra à mostra, o porteiro do jardim, a senhora da farmácia que tem o problema na fala mas não se inibe de falar até mais não, e a estrada que eu tanto gosto. A primeira coisa que vemos quando lá entramos e última recordação que trazemos à saída. Que me lembra a avó, os primos, a mana, verão, férias, amizade, amor, grande hotel, grandes pequenos-almoços, tardes no jacuzzi, dias inteiros de piscina, passeios de gaivota... Magia. E, quando os meus pensamentos se iam passeando pela rua dos plátanos, aquela onde eu sempre disse que queria passar vestida de noiva (sonhos de menina, diziam-me), o carro parou. E numa voz segura, que em nada tinha a ver com as mãos trémulas, saiu-lhe "sei que este é um lugar especial para ti e, como não posso trazer-te a casar aqui, quero que pelo menos o possas recordar como o sítio onde te pedi em casamento". Fez sair do bolso, como por magia, uma caixinha com um laço já desfeito. E, lá de dentro, um anel de diamantes (para mim, que só uso bugigangas e flores no cabelo). Foi ali, dentro do carro que parava o trânsito (quase tão surpreso quanto eu), que ouvi um "casas comigo?". Foi ali, em frente ao 32º plátano daquela rua, que disse "sim". Foi ali, exactamente na árvore que fica em frente ao velho pombal, que me deixei surpreender, sem reclamar, por uma única vez. Ou pelo menos, era o que eu pensava. Porque foi ali mesmo, em frente àquela árvore que imortalizei na minha máquina, que soube que ia passar a noite (a vida...?) como uma princesa no Hotel do Buçaco.
No domingo acordámos no Palácio e tomámos um pequeno-almoço digno de reis, "roubámos" toalhas como recordação e subimos à torre mais alta para nos podermos despedir de tudo. Regressámos mesmo a tempo de comer a caldeirada que os pais prepararam. Fui às tubras com a avó e a mãe. Encontrei a S.. Comi caracóis com a mana e a M.. Partilhei o jogo do Porto com o primo F.. Perdi-me na conversa com a avó T.. E vi bocadinhos do jogo do Sporting com o pai. E foi aí, no preciso instante em que o Marítimo marcou o golo, que me lembrei: Acidentes. Acontecem. É mesmo só uma questão de equilíbrio. Não podia ter um fim-de-semana tão cheio sem que nada de mau aparecesse. Mas foi então que, contrariando todas as expectativas, o Sporting conseguiu dar a volta.
E agora aqui estou eu, assim, contente como só eu sei, e a pensar em Acidentes, em Inefáveis. À espera que apareça um em qualquer lado… O anel continua largo e o teste de francês é já na quarta. Nada que um toque de magia não resolva. Hum, se bem me lembro, cruzo os dedos e digo “tsk, tsk, desaparece”. E o vento muda de direcção, levando outra pessoa no meu lugar. Passa mesmo, mesmo ao meu lado. Sinto-o na pele e no cabelo. Mas, hoje, não quero ir. Hoje, como nunca, percebi que é aqui o meu lugar.
*Adenda 1
E, no preciso instante em que ia publicar o post, lembrei-me de pôr um bonequito e puf, desapareceu tudo! Sim, acidentes acontecem. Mas o teste de francês foi adiado, o anel já está a apertar e jantei com T., para matar saudades. Lá está. Magia.
*Adenda 2
Ontem fui a uma entrevista de emprego, no mínimo, diferente. Fui sujeita a um questionário daqueles que parecem saídos de um qualquer revista de adolescentes (saudades...). "Defina-se em não sei quantas palavras. Diga o seu maior defeito. E a sua melhor qualidade. De 1 a 10, qual é a sua necessidade de dinheiro? Abdicaria das suas 1001 actividades para iniciar este projecto? O que gosta mais de fazer?". As respostas iam fluindo, com algumas gargalhadas não muito próprias para a altura, a mostrar a minha surpresa ou a minha inexperiência. Mas, nesta última pergunta, parei para pensar. Não sei. Ir ao Alentejo ao fim-de-semana? Partilhar as novidades da semana com os pais? Sair com a mana? Matar saudades dos amigos? Lanchar com os avós? Dar catequese aos meus meninos? Dançar pelos braços do Carlitos nas nossas actuações? Os jantares das amigas todos os meses? Os momentos de partilha com o Carlos? ... Pensei que não podia partilhar todos estas minhas fontes de energia com alguém que ia querer de mim apenas um texto de dois mil caracteres sobre o ensino superior por mês. E, depois, sem medo, a resposta saiu. "Ler". A surpresa invadiu-lhe o rosto, como se eu fosse um extraterrestre acabado de aterrar ali. "Pode explicar-se?". Como explicar a alguém que queria apenas avaliar-me que nada nos torna mais livres do que ler? Viver histórias, conhecer sítios, pessoas, sonhar... sem levantar os pés do chão. Como dizer-lhe que não consigo estar bem até devorar um livro por completo? Que sinto as personagens chateadas comigo enquanto estão arrumadas na mala, à espera que lhes dê vida? Respondi-lhe apenas "porque me permite sair de mim". E saí dali, entrei no carro até ao fórum e não consegui começar as compras sem antes tirar o livro debaixo do banco, espreitar só uma página muito rápido e mergulhar na Grande Guerra. Entrar na pele de Agnes e ajudar Afonso, que já chamava impaciente por mim...
. .Só
. .Medos
. .Mala
. .A sul da fronteira, a oe...