Era o primeira dia de festa, daquela que se faz esperar um ano inteiro. O dia tinha sido de correria – sozinha no serviço, dia de anos da mana, o jantar dela à minha espera num sítio e o meu colega apresentador de festa à minha espera noutro. Cheguei atrasada aos dois sítios, como não gosto, como tenho feito tantas vezes nestes últimos tempos, nunca por minha culpa mas da vida, que é mesmo assim. Jantei com ela e depois subi ao palco, já fora de horas. Enquanto esperava que terminasse o primeiro concerto, perto do Z., dos meus amigos, da minha família, começou a dar o “Forever Young”. É uma música que sempre mexeu comigo, que sempre vivi preocupada com a vida, com a morte, com a perda de todos aqueles que amo. Naquele dia mexeu mais ainda. Olhei para todos eles. Pensei também em todos os que não estavam ali, mas costumam estar. Olhei para tantos que não conhecia. Baixei os olhos e olhei para minha barriga. E estava feliz, pois estava, mas não pude deixar de deitar uma lagrimita – a vida muda mesmo, passa e arrasta-nos com ela. Depois daquele bocadinho de catarse interior, foi tempo de rumar ao Alentejo do Z. – chegámos às 04:00 e ficámos até às 19:00, só para estarmos um bocadinho com o melhor amigo dele, que fazia anos nesse dia. Seguimos outra vez para o meu – são só 02:30 de distância entre os nossos dois Alentejos, e por lá ficámos até domingo à noite – na segunda era dia de trabalho. E que dia – só terminou às 22:00. Antes, houve consulta, ecografia, e raspanete. Parece que o stresse e o cansaço dos últimos dias resultaram numa ‘incisura protodiastólica nas uterinas’. Na prática, faz com que passe menos sangue pelo cordão umbilical e pode provocar um parto prematuro, hipertensão e uma miúda magra de mais (que, até ao momento, não está). O meu médico, sempre tão calmo e ponderado, até levantou a voz para me dizer que tinha apenas até à próxima consulta para baixar o ritmo, ou era mandada para casa sem possibilidade de reclamar. E obrigou o pai a prometer que me arrastava até ali se eu me portasse mal antes dessa data – o pobrezito até regressou comigo ao trabalho, ser pai é difícil. E eu, pela primeira vez, tive medo a sério. Pela primeira vez, percebi que aquilo que faço tem mesmo implicações em mim e, pior do que isso, na minha pequena alvorada. Mas como é que se abranda o ritmo? Foram fins de semana e semanas de loucura. Em casa, no trabalho, com as pessoas à minha volta. Semanas com dias de trabalho de 14 horas e chegar a casa depois disso para lavar paredes e arrastar móveis, e ainda fazer viagens como se não houvesse amanhã. Dias em que cheguei ao trabalho lavada em lágrimas de tantas preocupações e que chegava a casa sem conseguir descansar. Todas estas coisas terão de ser, até dezembro, exceções raras e não a regra. Porque a vida muda mesmo, e o que acontece aos outros pode acontecer-nos a nós, e o que fazemos com a vida pode ter resultados menos bons. E eu, e todos os meus, podemos não ser para sempre jovens nem viver para sempre. Mas vem aí alguém que quero que acredite no contrário durante muito tempo… O meu pequeno raio de sol. E por ela, por esta nossa pequenina família, vale a pena mudar de vida.
No próximo sábado rumo à Curia para uma semana sem fazer rigorosamente nada para além de descansar e aproveitar as minhas pessoas. É tão bom que haja coisas que nunca mudam... E como era bom que esta (a avó, os primos, a mana, ...) pudesse durar para sempre.
Fizemos uma das viagens da nossa vida a Itália no mês que passou. Conhecemos Roma, Florença e Veneza em sete dias, numa correria boa. Uma semana antes descobrimos que estava a começar a grande viagem da nossa vida, o que nos obrigou a abrandar ligeiramente o passo e a provar a boa cozinha italiana a horas certas. Contamos agora treze semanas e alguns dias de enjoos, medos, refeições fora, mas de uma felicidade sem comparação. Na semana passada fomos formalmente apresentados, eu e o Z. a seis centímetros de gente. Esperneou e esbracejou durante toda a ecografia, e fez-me cair umas lágrimas valentes. Isto de ser mãe e pai é uma preocupação desde o primeiro dia em que se sabe, mas fez-nos descobrir já um amor maior do que todos os que conhecíamos. Começou a grande viagem.
As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXV"
Heterónimo de Fernando Pessoa
* Isla Mágica, Sevilha (24-09-2011)
Há teorias que vou ouvindo por aí e que me fazem tanto sentido que resolvo agarrá-las para mim também - mas a referência à fonte nunca é esquecida. Esta pertence à Ve.-do-cabelo-curto – que agora já é comprido, ou do-piercing. Tinha de a tratar assim por existirem duas Ve. na minha vida, e nem sempre as pessoas percebiam de quem estava eu a falar. Esta Ve., a do-piercing (a outra já falei dela aqui), sempre teve umas teorias muito engraçadas. O tempo foi apagando muitas delas, já não falamos tanto quanto gostaria, e já vão longe os tempos em que partilhávamos as mesmas salas de aulas no secundário. Ficou-me esta: “Mais vale mal acompanhada do que sozinha. Não há nada pior do que solidão”. Eu estou habituada a pessoas. Desde que nasci que ia para a loja assim que acordava, que fazia sestas entre as voltas da farinha ou do pão, que aprendi a estudar no meio do barulho por não gostar do silêncio, que ligo a televisão ou o rádio assim que chego a uma casa vazia, que detesto estar sozinha, que faço tudo por uma companhia e chego a dormir de luz acesa quando não há mais ninguém em casa. Encaixei-me nas palavras dela, vi que estava certa. Mas a mãe sempre me disse “todos precisamos do nosso espaço e da nossa solidão”. E talvez tenha chegado a minha hora de o perceber. Esta semana estou a fazer um horário que me permite sair às 15:30. Assim que posso, entro no carro e sigo, sozinha, até à praia mais perto do trabalho, em Paço de Arcos. Já gostei muito de praia, já gostei pouco, e este ano dei por mim a sentir mesmo falta dela, talvez por não ter podido ir tantas vezes. Como companhia levo apenas a toalha, o iPod e o livro do Haruki, a quem abri a porta mais uma vez. O ritual tem sido o mesmo todos os dias: chego, estendo a toalha, corro para um banho capaz de refrescar até os pensamentos mais negros, e depois volto à areia, para alternar entre a leitura, a música, os pensamentos soltos e as pessoas que me rodeiam. Ali, perdida na areia, tenho descoberto o prazer de estar sozinha. E hoje, enquanto espero ansiosamente pela hora de saída para repetir todos estes passos, penso em como meter conversa com a Ve.-do-piercing. Quero dizer-lhe que me lembrei dela, que tenho saudades da boa disposição que trazia todos os dias, das férias sem pais no Algarve e dos tempos que partilhámos juntas. E que, às vezes - talvez mesmo só às vezes, a teoria dela está errada. Às vezes - talvez mesmo só às vezes, estar sozinha é muito melhor do que estar mal acompanhada.
Ontem foi dia de voltar ao dentista. Contas feitas, tirei o aparelho há oito anos e há mais de dez que pisei aquele consultório pela primeira vez. Acordei cedo para poder ir de comboio, um dos meus pequenos prazeres. De iPod nos ouvidos até entrar na carruagem, e a alternar entre “A vida secreta das abelhas”, da biblioteca de Oeiras, e as vidas que iam ocupando os bancos à minha volta, segui até Entrecampos. Voltei a pôr o iPod e comecei a andar para o fundo – as torres cor-de-rosa eram já ali e a consulta era só às 10:30 – talvez me atendessem mais cedo, pensei. Foi quando vi um casal de velhotes a correr para o comboio, que já tinha fechado as portas e começava a andar nesse instante. Ele ia mais à frente, ela tentava apanhar os dois. Olhei para eles, para os ténis branquinhos nos pés dele – como aqueles que oferecemos nos anos ao avô há tanto tempo e que ele continua a usar como se fossem a coisa mais preciosa deste mundo, e não pude deixar de ver ali, neles, os meus avós. Deu-me tanta pena vê-los assim, a correr, a bater com a mão na porta sem que isso travasse o comboio, que comecei a chorar ali mesmo, enquanto andava. Não sei explicar bem porquê, só senti o coração apertado, e chorei. Chorei por eles. Chorei por mim. Pelos medos, inseguranças, dores, e pelo que o tempo faz. Chorei pelo pai, por vê-lo de muletas, por não lhe poder dar aquilo que merece. Chorei pela mãe, por não poder ajudar a transformar mesmo os sonhos mais pequeninos em realidade. Chorei pela mana, pelas doenças, doencinhas e doencitas que a incomodam sempre. Pelo trabalho que começa agora a procurar, pelo mestrado onde quer entrar. Chorei pela avó T., a ser operada ao olho naquele momento. Pela avó A., com medo que os maus entrem pela casa adentro sempre que está sozinha. Pelo avô Al., ao imaginá-lo orgulhoso no palco a acompanhar as cantadeiras com a gaita-de-beiços. Pelo avô X., que já não está connosco. Chorei pelo actor de Spartacus, que morreu esta semana com a doença do Tuto (chorei por ele também), a mesma que, com a quimioterapia, enfraquece a Ce. de dia para dia. Chorei pelo sr. J.P., a quem o coração quase trocou as voltas e pela Cr., que sofre por isso. Chorei pelo Z., enquanto o imaginava em outros braços a dançar a música que estava a ouvir no momento da mesma forma que o faz comigo. Chorei pela Lily, heroína do livro guardado na mala, que acabava de encontrar May sem vida. Dei por mim a chorar por este mundo e pelo outro, por mim e por todos os outros. Talvez fossem lágrimas acumuladas em tantos dias, que precisavam apenas da mínima faísca para saírem para fora. E o dique rebentou, ali na plataforma de Entrecampos, ao ver o desalento de dois velhotes que acabavam de perder o comboio. Continuei a andar, aumentei o som e esperei que as lágrimas secassem. Só vejo o meu dentista preferido uma vez por ano, não ia receber o “cara linda, cá estás tu outra vez” lavada em lágrimas. Esperei na sala por pouco tempo e entrei para uma repetição destes últimos anos. “Cara linda, cá estás tu outra vez. Sorri. Abre. Fecha. Trinca. Que curso tiraste tu? Jornalismo? Como é que foste para isso? E onde estás agora? Ah, pois é, já não me lembrava. Continuas perfeita, com um sorriso perfeito. Flúor de limão, mentol ou morango? Volta cá daqui a um ano. Gosto em ver-te, cara linda”. E eu saí com o meu melhor sorriso, sem pensar que o mesmo discurso estava já a ser repetido à menina que entrava. Olhei para as horas, 10:37. Corri até ao Campo Pequeno para comprar uma massinha para o almoço e cheguei à plataforma ao mesmo tempo que o comboio – 10:57. Corri, entrei sem saber bem como, percebi que não tinha validado o bilhete, voltei a sair e a entrar e foi quase por milagre que segui viagem. Ou não. Estava tão absorvida na leitura que nem dei conta das pessoas que iam entrando e saindo, nem dos meus companheiros de viagem. Foi só quando a minha paragem se aproximou, e me encaminhei para a porta, que os vi. Não eram os mesmos da manhã, era outro casal de velhotes. Tinham tantos, mas tantos sacos, que não consegui imaginar como tinham chegado até ali. Duas malas térmicas grandes, um saco daqueles enormes de supermercado cheio, e dois carrinhos de compras, um deles bem grande. Tirei os fones, arrumei tudo na mala e fui ter com eles, posso ajudar a levar os sacos? Que sim, que podia, muita obrigada, que talvez o elevador estivesse a funcionar e aí seria mais fácil. Levei-os até lá, e tentei certificar-me de que não precisavam mais de ajuda. Foram tão convincentes que acreditei que alguém estaria lá em baixo à espera deles. Foi só quando desci as escadas e me dirigia para a saída que os voltei a ver, sozinhos, a tentar equilibrar tudo aquilo. Fui a correr, deixe-me ajudá-la, para onde vão? “Deus lhe pague, para o táxi”, dizia-me. Agarrei em dois dos sacos e senti mais uma vez o peso de tudo aquilo – muito mais do que o que estava lá dentro. Isto é muito pesado para si. E ela agarrou-me o braço, que as dores mal a deixavam caminhar, que já tinha caído desamparada no Areeiro e o joelho, negro, aumentava de tamanho e impedia-a de continuar. Ajudei-os a entrar no táxi, com um condutor nada simpático. Ainda ousei pedir-lhe para os ajudar a descarregar tudo o que traziam de outras hortas quando chegassem ao destino, mas o ar dele de espanto não me deixou mais descansada. Acho que ainda nem me tinha despedido deles e já as lágrimas tinham voltado a cair. Pelo peso dos sacos, pelo joelho dorido, pela falta de alguém à espera deles. Por tudo e por nada, pelos males do meu mundo e do mundo dos outros. Segui para o carro, à espera para me levar até ao trabalho, debaixo de um sol que sufocava tanto quanto as lágrimas. Pensei em como estes dias têm sido de contrastes. Passei o domingo na praia, com o Z. e os pais, e não parámos de rir. Das piadas, da cesta da comida, do bronzeado manchado que apanharam os três. À noite, enquanto comíamos choco frito em Setúbal, fomos atacados por uma vaga de mosquitos que nos fez chorar a rir. Ficámos todos picados, mesmo depois de termos morto uns 20. Eu matei três só na testa do pai, o pai batia no Z., a mãe em mim e até derrubei um copo de coca-cola em cima de mim ao tentar acabar com um que me picava o braço. Mal conseguimos comer, entre picadas e gargalhadas, enquanto víamos as outras mesas também neste estranho ritual de agressão aos companheiros de refeição. E ali estava eu, depois de tanto riso, numa crise de choro pela segunda vez no mesmo dia.
Depois de sair do trabalho voltei a Lisboa de comboio. O Z., o Di. e a Ta. esperavam-me para um jantar no Lucca. E aí voltei a rir, muito. A celebrar a amizade, o amor, as coisas boas que a vida também me vai trazendo, regados a chá de jasmim com limão e canela. Liguei aos pais e aos avós, a tentar sossegar o temporal que me tinha apanhado durante o dia, e ainda ajudei a mana a fazer a carta de motivação para se candidatar ao mestrado antes de cair na cama. Adormeci a tentar equilibrar as emoções do dia, a tentar conciliar tantos contrastes. E, tenho a certeza – talvez por não ter mais lágrimas para gastar -, com um sorriso. Aquele que o meu dentista diz que é perfeito.
Já trabalho há alguns anos e o começo foi duro – entre outras coisas más, os recibos verdes só permitiam uma semana de férias por especial favor. Agora, com cerca de um mês para tirar, trato sempre estes dias com muita estima, e faço por dividi-los da melhor forma pelo ano inteiro. Nada de três semanas seguidas (esta modalidade em que nos inseriram só tem mesmo isto de bom), que intervalado é muito melhor. Estive uns dias de férias, por Londres e no Andanças, voltei ao trabalho, depois fui para a Curia, voltei a trabalhar esta semana, e na próxima volto a estar de férias. Já tive passeio, descanso, agora quero Alentejo e praia. Vou aproveitá-los bem, porque as próximas férias são só depois do Natal – vamos conhecer Barcelona. O .se perguntarem por mim digam que voei também vai de férias, para se despedir desta espécie de Verão. Voltamos dentro de uma semana.
Comida boa…
Estão relacionadas com a comida algumas das nossas muitas regras: comer sopa uma vez por dia, não esquecer o leite ou iogurte ao pequeno-almoço, comer pelo menos uma vez leitão e visitar a pizzaria da Mealhada. Ainda temos a noite do cachorro: passamos pelo supermercado de lista na mão e entramos cheios de sacos no hotel. Este ano reservaram-nos uma suite, com uma mesa gigante, perfeita para a noite do cachorro. Ou não fossemos nós já clientes habituais - destes sítios todos.
Praia…
Começámos a visitar Mira ainda no tempo em que os pais nos levavam para a Curia. Agora já vamos sozinhos, mas não esquecemos a visita à praia. A bandeira está sempre vermelha, não há banho para ninguém, mas é sinal de gaivotas, marisco e passeio. Encontrámos este milho pelo caminho e não resistimos a parar.
Cinema…
O ano passado, enquanto eu tentava dividir os nossos muitos planos pelos poucos dias, a Ma. saiu-se com um “para vocês é despachar, para mim é aproveitar”. Mas é aproveitar para todos. Os planos incluem sempre uma ida a Aveiro ao cinema. Este ano conseguimos pôr uns óculos de 3D na avó – vimos os Smurfs, que dava para todas as faixas etárias. Nesse dia, mais à noite, parámos os jogos do Uno e do Trivial e fomos ao bar do hotel, onde encontrámos o primo F. e o namorado da mAna assim, nesta figura, em frente à televisão a ver o futebol, com os óculos 3D.
Exercício…
Com tudo o que comemos, é preciso fazer algum exercício para que a balança continue amiga no final das férias. Gaivota, passeio pelo parque, piscina e nada de elevador (esta última parte é mesmo só para mim, para o Z. e para a Ma.). Até este ano, eu e o Francisco detínhamos o recorde de idas ao ginásio pela manhã – todos os dias. Este ano o cansaço não me permitiu, e ainda me obrigou a dormir a folga todos os dias. Já diz a minha avó que o senhor que inventou o descanso deve ser muito bem tratado no céu.
Radical…
A primeira e principal regra da Curia diz que “onde vai um vão todos”. O membro mais novo do grupo tem 13 anos, a avó já passou dos 70, e há que agradar a todos. Este ano, para fazer a vontade ao primo F., fomos até ao kartódromo de Oiã. No vídeo que a mAna e a Ma. fizeram só se ouve “a minha irmã é uma tartaruga – olha, já a estão a passá-la outra vez”. Era a minha primeira vez, e logo entre três matulões que disputavam o lugar no pódio. Resolvi aproveitar, à tartaruga.
Compras…
Dia de cinema é dia de compras em Aveiro. Os meninos fogem para a livraria ou para comer uma tripa com ovos moles (a mAna cola-se a eles), o resto corre todas as lojinhas do Fórum. Nos outros dias dedicamo-nos às lojinhas da Curia, e à terça é dia de feira de antiguidades, no Jardim, onde comprei estes brincos. A senhora da farmácia deve ser uma grande fã nossa – não há dia em que a gente não passe lá para comprar qualquer coisa: Cicalfate para a ferida da avó (que caiu na festa), comprimidos para o herpes no olho da mana, creme para os pés da Ma., e coisas várias para a constipação que só deixou o primo F. de fora. Passamos todos os dias pelas lojas das amigas da avó, que nos conhecem à distância, e até estranham quando vamos mais tarde para as férias. Também somos grandes clientes do senhor do Euromilhões / Raspadinhas e da senhora da papelaria – mas estes não são nossos fãs, podemos deixar lá este mundo e o outro, mas, em tantos anos, nunca recebemos um sorriso de volta. Não faz mal, continuamos a passar por lá todos os dias.
Amor…
De avós, de netos, de primos, de irmãos, de namorados. Uma das senhoras do hotel dizia ao pequeno-almoço: “Que engraçado, são todos netos? E vêm com a avó? Há quanto tempo? Aproveite, minha senhora, olhe que depois crescem, arranjam alguém, e já não querem vir”. Pois, pois. Ao grupo já se juntaram dois apêndices, candidatos a netos emprestados. E a tendência é para aumentar.
Avó T. ...
É também por ela que estamos aqui, neste mundo. Com 16 meses de diferença, trouxe à luz do dia o pai, que me teve a mim e à mAna, e o padrinho, que tem o Fr. e a Ma.. É por ela também que todos os anos estamos aqui, na Curia. E, lá, tudo gira à volta dela, ainda que nos diga sempre: “é como vocês quiserem”. Levamo-la ao cabeleireiro, à missa, estamos no hotel a tempo das novelas, não nos esquecemos das gotas, exageramos no mimo e fazemos massagens aos pés. Este ano demos-lhe uma lembrança pequenina, e, ainda antes de agradecer, disse logo: “quanto é que isto foi para eu vos dar o dinheiro? Na Curia pago eu”. É a nossa avó T..
Nós…
Juntos. Podia ser assim em qualquer outro sítio, mas nós acolhemos este como a nossa segunda casa. A Curia.
(senhores da Curia: não lhe façam mal. Já nos tiraram um bocadinho do coração quando derrubaram a casa ao lado do Vila Rosa para construir uns prédios horríveis, agora ouvimos dizer que, com as obras, vão tirar as árvores da minha estrada preferida para construir uma ciclovia. Não dá para fazer e deixar os plátanos? Agradecemos muito. E limpem o lago, que já precisa.)
Estive de férias e não dormi mais do que cinco horas por noite. Regressei a precisar de férias – mas gostei tanto. Teve tudo o que importa: amor, família, amigos, danças, água, sol, petiscos.
Apaixonei-me por Londres. Gostei das ruas, das pessoas, das coisas. Adorei o mercado de Camdem (vestidinhos giros – trouxe dois, pessoas diferentes, comidas de todas as cores, negócios inimagináveis, …), o Museu da Guerra (a exposição “Pessoas normais podem ser heróis improváveis” tocou-me) e o Museu Geffrye (mobiliário e material de casa desde 1600 até 2000, com salas montadas para as várias décadas).
À segunda viagem juntos, eu e o Z. percebemos uma coisa: aquilo de que gostamos realmente nos países que conhecemos, ou melhor, o sítio onde passamos mais tempo é nas lojas de comida. Em Paris estivemos uma hora numa loja de congelados, espantados com a diversidade, desta vez perdemos a conta ao tempo – tantas coisas diferentes a preços espectaculares.
A máquina fotográfica avariou de vez na nossa volta no London Eye. Valeu-nos o telemóvel e uma máquina descartável. Assim que aterrámos em Lisboa a primeira coisa que fizemos foi comprar uma. Já foi trocada três vezes por motivos vários (histórias inacreditáveis), mas, como todos dizem, temos “um maquinão”.
Tentaram roubar o meu carro. É velhinho, de 98, mas não deixou – parece que tem uma defesa qualquer ao nível da chave. Ficou sem bateria de tanto tentarem levá-lo, e só esta semana voltou a funcionar. É um resistente. E fiel.
Levámos um coxo, de muletas, para o Andanças – fez um sucesso. Quero mais disto, foi tão bom: amor, família, amigos, danças, água, sol, petiscos. E o senhor de bigode a dizer que nos partia o carro todo por termos estacionado no terreno do cunhado e que acabou a beber do caneco do Em. e a mandar-nos estacionar no próprio terreno? Viva a gente do Norte.
A mana chegou aos 21 e está no primeiro emprego – no ATL, com regras e tudo. Teve uma grande surpresa ao chegar ao restaurante só com a família mais chegada e encontrar tios, padrinhos, afilhados e avós. Entrou a reclamar na sala por lhe taparem os olhos, ou não fosse ela a minha maAna Luísa.
A minha Ma. e a prima do Z., a Le., vieram passar a última semana connosco a Lisboa. Fomos à praia, às compras, comemos pastéis de Belém à noitinha, aproveitámos o Festival dos Oceanos para visitar o Museu dos Coches e da Electricidade até à meia-noite. Ficámos tristes com o Planetário, que não nos aceitou, apesar de termos chegado a horas. E terminámos a semana em grande: vimos a peça de teatro “O Principezinho” na Quinta da Regaleira, e depois subimos o poço.
Fiz um cruzeiro pelo Alqueva com os amigos e não resistimos a dar um mergulho, numa zona com 30 metros de profundidade. Fomos todos numa carrinha dos meninos da escola (a Su. e o mano foram lá ter), com a mala recheada de presunto caseiro e pão alentejano. Ainda fizemos Geocaching e terminámos o dia a jantar numa festa com bailarico. Quero mais disto: amor, família, amigos, danças, água, sol, petiscos.
Mas agora preciso de descansar. Domingo rumo à Curia para o merecido descanso. Mas antes ainda são as festas da terrinha, porque isto também faz falta: amor, família, amigos, danças, água, sol, petiscos.
Conheci Londres há já muito tempo. Tinha acabado de chegar à escola nova, no 9º ano, quando a professora de inglês nos lançou o convite. Tínhamos tantas tarefas entre mãos (reuniões, angariações de dinheiro, convencer os pais, …), que achei que seria uma missão impossível. Quando dei por mim no avião ao lado do Tuto nem acreditei muito bem. Foi assim que me estreei nas viagens de avião, numa espécie de viagem de finalistas – eu, que era nova ali; com os colegas do 9º ano. Foi uma semana muito intensa. Ficámos divididos em casas de família e logo aí tivemos a primeira surpresa. Os colegas contavam-nos sobre as famílias divertidas que lhes tinham calhado em sorte, com pizas, idas ao cinema, passeios pela cidade. Eu e as minhas três colegas de casa engolíamos em seco: estávamos desterradas num sótão, com cancelas e cadeados em todos os andares, portas com três fechaduras e permissão para entrar apenas em três sítios: quarto, casa-de-banho e copa (nada de levar o prato para a cozinha depois de terminada a refeição, éramos brindadas com um olhar fulminante). Trancávamos a porta também, não fosse o filho da dona da casa – rapaz que se apresentou de toalha à cintura, sem pele que se visse entre tantas tatuagens e piercings, nos atacasse. Pior do que tudo isto era a comida. O nosso primeiro pequeno-almoço resumiu-se a um ovo cozido e uma caneca de chá ou café. Num dos primeiros jantares tivemos de mentir e dizer, no nosso inglês aflito, que já tínhamos comido qualquer coisa na rua: duas batatinhas cozidas às 16:00 (disse ela), uma fatia de queijo e uma de tomate não nos seduziram. E lá veio novo ralhete. Não sabíamos se devíamos chorar ou rir (não percebíamos metade do que dizia, era qualquer coisa como falta de responsabilidade, tinha ela preparado aquilo para nós às 16:00…). E fomos para o castigo, o nosso espaço – ou o único onde podíamos estar longe dela. De Londres recordo bem duas coisas: a amizade que cresceu entre todos, e a falta de sol. Não dava para fazer a fotossíntese, não dava para animar, era um céu carregado em cima de nós dia e noite (acho que ainda hoje vejo no céu de Londres a cara da senhora a ralhar connosco). Lembro-me da visita ao Sega World, da descida rápida num aparelho qualquer da Pepsi (tenho uma foto em que só não se vêem as minhas amígdalas porque já as tinha tirado), do porta-chaves que comprei com a minha fotografia, do vidro da montra que se partiu mesmo à nossa frente, do melhor cachorro que já comi comprado numa rua com modelos humanos nas montras a um senhor que adorava Lisboa, do dia em que deixámos a escola inteira à espera no comboio porque ninguém nos avisou que a hora mudava e ganhámos uma viagem a velocidades indescritíveis pela cidade com o guia, dos tops que todas comprámos iguais, da estátua dos leões a que subi para tirar uma foto para dar ao pai (e as dores que senti nos pés quando saltei de lá), da bola de futebol que uns senhores de barco na Serpentine nos devolveram (tenho uma foto no meu quarto nesse mesmo sítio), de um colega ter ficado para trás no metro e o pânico se ter instalado, de ter enjoado o McDonalds por ser quase a única coisa comestível. Mas, do que nos lembramos todos ainda melhor, é da noite passada no aeroporto. Ninguém contava com o acidente na auto-estrada, nem que o piloto não nos deixasse entrar depois do nosso pequeno atraso. Chorei nem sei bem porquê – talvez porque sou mesmo chorona, de mão dada com o Tuto, enquanto tentava ligar para avisar os pais. A verdade é que este talvez tenha sido o melhor momento de Londres: passar a noite naqueles bancos (confortáveis, não como os de Paris, onde se dorme muito mal – por experiência própria), tirarmos fotos uns aos outros a dormir de boca aberta ou em poses mais impróprias, ver a V. comer um Big Mac às 04:00 da manhã, fugir de polícias por jogarmos à bola nas escadas rolantes, tirar fotos em todas as máquinas disponíveis pelo aeroporto enquanto tivemos libras, marcou-nos mais, aproximou-nos mais. Fazendo contas, conheci Londres há 13 anos atrás. Está mesmo na hora de voltar lá. Depois do mau tempo, da greve dos senhores espanhóis, das ameaças da TAP, parece que é mesmo hoje. O roteiro está feito, quase todo gratuito. Já está tudo enrolado na mochila e os líquidos divididos pelos frasquinhos de 100ml, nada de bagagem de porão, porque tempo é coisa que nos falta e vale libras. Eu e o Z. voltamos ao ar hoje às 19:30. - Não saltes desta vez L.-inha!, diz-me o senhor Viseu enquanto me deseja boas férias. Não, desta vez é mesmo até Londres. ‘Bora lá.
Volto na terça à noite, e na quarta de manhã sigo logo para o Andanças, em São Pedro do Sul, até sábado, com um grupinho bem bom. Como me dizia o rádio do meu popó há pouco, “o que faz falta é animar a malta”. ‘Bora lá.
Deixo por aqui a banda sonora dos meus pensamentos dos últimos dias, que tem tocado em modo repeat aqui no estaminé desde que a A. anda a treinar para o concerto de logo à noite (aqui não temos acesso ao YouTube, peço desde já desculpa se as imagens que acompanham o som forem muito más ou pirosas):
Desde que o meu Z. fez o curso de pára-quedismo militar que isto era assunto recorrente. “Um dia vamos fazer o civil”, “Aquilo é espectacular”, “Lá em cima é que é”. Seis saltos fizeram-no esquecer três semanas de cangurus e rezas árabes. E, no meio deste entusiasmo todo, dei por mim com um vale para fazer um curso de pára-quedismo civil. Depois de muita hesitação, marcámos para este fim-de-semana. Assim que nos cruzámos com o Instrutor, um pára-quedista militar já reformado, perguntou-me se eu ia só assistir. É difícil traduzir em palavras o ar desconfiado, desanimado que ele fez quando lhe disse que ia participar. Deixou-me um bocadinho desanimada também. Éramos um grupo de nove, e eu era a única rapariga. Ia ser a minha 'família', como explicou o instrutor. O primeiro dia foi de teoria. Procedimentos depois de sair do avião – contagem, verificar se a calote abriu, puxar os manobradores umas vezes para verificar se está tudo bem, ver se temos vizinhos, verificar onde estamos e começar a caminhada para a zona de aterragem, sempre à esquerda da pista, passar no ponto inicial (onde temos de estar aos 1000 pés), aos 500 pés virar 90º, aos 300 mais 90º e aterrar, sem olhar para o chão mas em frente. Estudámos incidentes simples e graves, como libertar a asa principal e puxar o de reserva, qual o trajecto a fazer desde que saltamos até aterrar e como sair do avião. Aprendemos até como aterrar na água, em telhados, em cima de árvores ou carros, contra cabos eléctricos e o que fazer caso ficássemos presos ao avião. Às vezes ficava assustada, outras mais calma, mas desistir é que nem pensar. A teoria terminou às 20:30, o que nos obrigou a jantar ali por perto, em São Mansos, no restaurante do sr. Xico, uma das coisas boas do fim-de-semana – quero lá voltar para provar aquela ementa toda. No domingo chegámos cedo, depois de um pequeno-almoço em família, a tempo de treinar as saídas da barreira ao lado do estacionamento. O caminho entre V. N. S. Bento e Évora foi feito a tirar notas, enquanto recordávamos as palavras da véspera e víamos dezenas de coelhinhos bebés a correr ao lado da estrada. Quando encontrei o senhor Mo., o instrutor, confessei-lhe que tinha passado a noite a saltar, “Oh amiga, eu não vos disse para descansarem?”. Só quando ele percebeu que tinha sido em sonhos é que deu para rir e aliviar um bocadinho. E foi assim que chegou a altura de saltar pela primeira vez. Resolvi não me preocupar, nem ficar ansiosa, logo se veria. O senhor Ma., ajudante do instrutor, andava sempre de roda de mim, a tentar apertar-me as protecções das pernas, grandes demais para alguém pequeno como eu. Era a quarta a saltar, e o Z. deu-me a mão o tempo todo. O pânico, ao nível do coração, chegou quando abriram a porta, ainda antes da minha vez. O vento, de todos os lados, a querer sugar-nos, deixou-me sem reacção. Depois veio o pânico maior: sair, lá em baixo, tinha sido fácil, não me tinha lembrado que lá em cima haveria o vento. Sair, com os meus 50 quilos mais os 15 às costas do pára-quedas, com todo aquele vento a empurrar-me, foi mais difícil do que imaginava. Pôr o pé esquerdo no patim, agarrar a barra com uma mão, depois colocar o outro pé e a outra mão foi a minha grande dificuldade. Não era a altura, não era o atirar-me, era o vento a querer levar-me. “Quando saltares, olha para mim”, dizia o largador, e eu tentei, mas não me lembro de nada. É por isso que se chama saltar e não largar, pensei eu depois em terra, enquanto pensava no que tinha feito mal – larguei as mãos e não saltei com os pés, e o vento levou-me logo, em muitas voltas acrobáticas pelo ar (que triste foi ver-me no vídeo), até sentir o pára-quedas a puxar-me nem sabia bem para onde. Quando dei por mim, a calote estava aberta, o instrutor dava ordens pelo rádio, tentei apanhar os manobradores, e senti o sangue na boca. Um cordão, o pára-quedas a abrir, o meu braço com sangue na camisola, não sei, qualquer coisa me tinha cortado o lábio por dentro. Mais descansada – não era o meu cérebro a esvair-se em sangue, tentei aproveitar, enquanto o meu coração se esforçava para caber no sítio que lhe foi reservado. Foi aí que percebi que não tinha feito nenhum dos procedimentos. Estava ali, a voar. Estava a 1200 metros do chão, via Évora, via o meu Alentejo, via o planeta, como dizia o senhor Ma.. Levei as mãos ao chão na aterragem, mas estava mais ou menos feliz. O meu primeiro salto estava feito, faltavam só três. Aterrei nas ervas, ao lado da pista dos aviões, enquanto me esforçava por ignorar os bichos que teimavam em passar à minha volta. Estava em terra, apesar daquela má partida. Fui recebida com palmas por algumas pessoas que estavam a assistir. Corajosa, diziam elas, e eu a tremer por dentro. No segundo salto o pânico instalou-se mais cedo – não queria mais cambalhotas daquelas, não queria sentir o vento a invadir-me o corpo e a alma. Não podem tirar o patim e saltamos de frente?, pensava eu. Não, não podiam, e os meus medos confirmaram-se. A mão que me encorajou no primeiro salto estava lá em baixo, a ver-me. O salto foi ainda pior que o primeiro, ou talvez fosse a minha desilusão a tomar conta de mim. Depois de já estarmos no ar, de porta aberta, tivemos de voltar para trás por falta de gasolina, o que só aumentou a ansiedade. Deixei-me ir outra vez, em acrobacias desnecessárias, a sentir o puxão vindo não sei de que sítio outra vez. Estava tão irritada comigo própria que me esqueci de aproveitar o salto, as orientações da C. pelo rádio deixavam-me baralhada, por ser a terceira a saltar tinha ficado longe de tudo, e, se não estivesse ali com tanta gente, teria chorado com toda a certeza. Foi assim que o Z. me encontrou, sentada nas ervas, ainda sem apanhar a asa, e a fazer força para as lágrimas não saírem. Senti que aquela não era mesmo a minha onda, que tinha medo, que queria ir para casa, que afinal a coragem não era o meu forte. E ainda faltavam dois saltos. Só de pensar no terceiro tremia, e o Z. ficou ali, a animar-me, e eu a responder mal. Só pensava que não era capaz. Quando chegou a vez de me equipar para o terceiro salto, fiz tudo sem pensar muito. Tinha de ser, não ia desistir a meio. A parte que mais me assustava não durava mais que um minuto, e tinha de pensar que o tempo passa rapidamente. A C., que percebeu o meu pânico calado, ensinou-me um truque, também por ser baixinha como eu: “sai com o tronco baixo, para enfrentares o vento, e não ponhas os pés todos no patim, põe só as pontas”. O largador, a quem eu tentei explicar que era muito lenta a chegar ao patim, disse-me apenas “comigo não há lentidão, sais e depressa, que és a segunda e há mais gente para saltar atrás de ti”. Talvez por isso, por pensar que tinha de ser e tinha, e depressa que ele não estava para ter paciência comigo, nem pensei muito. Saí como a C. me ensinou, e lá me lembrei de saltar em vez de largar as mãos. E foi aí que percebi que estava a cair a direito. Nada de cambalhotas, saltos acrobáticos, puxões vindos não sei de onde. Olhei em volta, sem pára-quedas ainda, com o mundo por baixo de mim. E disse asneiras, tantas quanto me lembrei, mais do que pensei saber, enquanto intervalava com “L.S., tu conseguiste saltar bem”. E gritava, gritava muito. O vento estava mais forte, a asa mais instável, mas consegui aproveitar. Vi a casa com piscina, lembrei o que fazer caso caísse lá, e segui a instruções do senhor Mo., que ainda teve tempo de brincar comigo e dar-me ‘música de discoteca’. Eles esqueciam-se que os meus colegas de grupo, a minha ‘família’, pesava quase o dobro de mim, e mandavam-me travar na mesma altura – como não tinha muita força para puxar os manobradores de uma só vez, acabava sempre por aterrar com alguma velocidade. Desenvolvi o meu método: amortecia com os pés direitos, e depois deixava-me cair com jeitinho. Foi assim que me deixei ficar, como se estivesse na praia, enquanto o Z. corria para mim, o senhor Mo. ralhava pelo rádio, “rapariga, mas porque é que caíste assim, estavas tão bem, ainda te magoas”, e a minha ‘família’ de fim-de-semana me imaginava lesionada. E eu sentada, a rir, e a responder-lhe sem que ele me ouvisse. Eu saltei bem, eu saltei bem, era só o que me saía, enquanto sentia o lábio a latejar, e uma das pernas a criar uma grande nódoa negra. O Z. fez a festa comigo e ajudou-me, uma vez mais, a apanhar a asa. "Onde é que arranjaste um namorado assim? Também queremos um", brincavam os rapazes comigo. Quando cheguei perto deles, quase saltei para cima do senhor Mo. – e ele, pára-quedista da velha guarda, lá desarmou e abraçou-me também “ai rapariga, eu não te disse que o segundo é que era o do cagaço?”. Achei que era melhor agradecer também ao largador, o último, menos simpático à primeira, mais directo, e ele disse-me que, dos cinco que seguiam nesse avião, o meu salto foi o melhor. E isso deixou-me feliz. Não sei como vai ser o quarto salto, que teve de ficar para outro dia. Não posso dizer que fiquei apaixonada, que quero muitos mais saltos na minha vida, que vai ser uma prioridade. Mas sei que valeu a pena. Que fiz parte de mais uma coisa do Z., enquanto as namoradas do resto da ‘família’ estavam lá em baixo, a tirar fotografias. Que me superei em tantos aspectos. Que fui capaz. Que enfrentei medos. Que saltei, sozinha. Que pude sentir-me orgulhosa de mim. Lá em cima, enquanto caía a direito, na posição certa, com tempo para os procedimentos certos pela primeira vez, e me lembrava de todas as asneiras que me saíam quase sem pensar, só pensava uma coisa. “Posso ir parar ao inferno, mas isto ninguém me tira, agora, neste momento, estou no céu”.
Hoje vim a pé para o trabalho, porque a bateria do meu popó resolveu ir à vida. Vim por trás, uma vez mais, a corta-mato. Quando o senhor dos autocarros me viu sair de lá fez um ar de espanto, e só depois de um bocadinho me conseguiu dizer: “a menina mora aqui perto?”. Lá lhe expliquei. “Mas isto é tão abandonado, e uma menina assim sozinha aqui, não tem medo?”. Disse-lhe que me basta meter os phones nos ouvidos para me esquecer do mundo, enquanto canto e danço. “E sou corajosa”, queria acrescentar, “ontem até saltei de pára-quedas”! Mas guardei tudo para mim e fiquei-me pelo sorriso.
. .Da vida
. .Só
. .No céu
. .Mãos frias. Coração quen...
. .Do bem e doutras coisas....
. .“Oh these times are hard...