Conheci Londres há já muito tempo. Tinha acabado de chegar à escola nova, no 9º ano, quando a professora de inglês nos lançou o convite. Tínhamos tantas tarefas entre mãos (reuniões, angariações de dinheiro, convencer os pais, …), que achei que seria uma missão impossível. Quando dei por mim no avião ao lado do Tuto nem acreditei muito bem. Foi assim que me estreei nas viagens de avião, numa espécie de viagem de finalistas – eu, que era nova ali; com os colegas do 9º ano. Foi uma semana muito intensa. Ficámos divididos em casas de família e logo aí tivemos a primeira surpresa. Os colegas contavam-nos sobre as famílias divertidas que lhes tinham calhado em sorte, com pizas, idas ao cinema, passeios pela cidade. Eu e as minhas três colegas de casa engolíamos em seco: estávamos desterradas num sótão, com cancelas e cadeados em todos os andares, portas com três fechaduras e permissão para entrar apenas em três sítios: quarto, casa-de-banho e copa (nada de levar o prato para a cozinha depois de terminada a refeição, éramos brindadas com um olhar fulminante). Trancávamos a porta também, não fosse o filho da dona da casa – rapaz que se apresentou de toalha à cintura, sem pele que se visse entre tantas tatuagens e piercings, nos atacasse. Pior do que tudo isto era a comida. O nosso primeiro pequeno-almoço resumiu-se a um ovo cozido e uma caneca de chá ou café. Num dos primeiros jantares tivemos de mentir e dizer, no nosso inglês aflito, que já tínhamos comido qualquer coisa na rua: duas batatinhas cozidas às 16:00 (disse ela), uma fatia de queijo e uma de tomate não nos seduziram. E lá veio novo ralhete. Não sabíamos se devíamos chorar ou rir (não percebíamos metade do que dizia, era qualquer coisa como falta de responsabilidade, tinha ela preparado aquilo para nós às 16:00…). E fomos para o castigo, o nosso espaço – ou o único onde podíamos estar longe dela. De Londres recordo bem duas coisas: a amizade que cresceu entre todos, e a falta de sol. Não dava para fazer a fotossíntese, não dava para animar, era um céu carregado em cima de nós dia e noite (acho que ainda hoje vejo no céu de Londres a cara da senhora a ralhar connosco). Lembro-me da visita ao Sega World, da descida rápida num aparelho qualquer da Pepsi (tenho uma foto em que só não se vêem as minhas amígdalas porque já as tinha tirado), do porta-chaves que comprei com a minha fotografia, do vidro da montra que se partiu mesmo à nossa frente, do melhor cachorro que já comi comprado numa rua com modelos humanos nas montras a um senhor que adorava Lisboa, do dia em que deixámos a escola inteira à espera no comboio porque ninguém nos avisou que a hora mudava e ganhámos uma viagem a velocidades indescritíveis pela cidade com o guia, dos tops que todas comprámos iguais, da estátua dos leões a que subi para tirar uma foto para dar ao pai (e as dores que senti nos pés quando saltei de lá), da bola de futebol que uns senhores de barco na Serpentine nos devolveram (tenho uma foto no meu quarto nesse mesmo sítio), de um colega ter ficado para trás no metro e o pânico se ter instalado, de ter enjoado o McDonalds por ser quase a única coisa comestível. Mas, do que nos lembramos todos ainda melhor, é da noite passada no aeroporto. Ninguém contava com o acidente na auto-estrada, nem que o piloto não nos deixasse entrar depois do nosso pequeno atraso. Chorei nem sei bem porquê – talvez porque sou mesmo chorona, de mão dada com o Tuto, enquanto tentava ligar para avisar os pais. A verdade é que este talvez tenha sido o melhor momento de Londres: passar a noite naqueles bancos (confortáveis, não como os de Paris, onde se dorme muito mal – por experiência própria), tirarmos fotos uns aos outros a dormir de boca aberta ou em poses mais impróprias, ver a V. comer um Big Mac às 04:00 da manhã, fugir de polícias por jogarmos à bola nas escadas rolantes, tirar fotos em todas as máquinas disponíveis pelo aeroporto enquanto tivemos libras, marcou-nos mais, aproximou-nos mais. Fazendo contas, conheci Londres há 13 anos atrás. Está mesmo na hora de voltar lá. Depois do mau tempo, da greve dos senhores espanhóis, das ameaças da TAP, parece que é mesmo hoje. O roteiro está feito, quase todo gratuito. Já está tudo enrolado na mochila e os líquidos divididos pelos frasquinhos de 100ml, nada de bagagem de porão, porque tempo é coisa que nos falta e vale libras. Eu e o Z. voltamos ao ar hoje às 19:30. - Não saltes desta vez L.-inha!, diz-me o senhor Viseu enquanto me deseja boas férias. Não, desta vez é mesmo até Londres. ‘Bora lá.
Volto na terça à noite, e na quarta de manhã sigo logo para o Andanças, em São Pedro do Sul, até sábado, com um grupinho bem bom. Como me dizia o rádio do meu popó há pouco, “o que faz falta é animar a malta”. ‘Bora lá.
Deixo por aqui a banda sonora dos meus pensamentos dos últimos dias, que tem tocado em modo repeat aqui no estaminé desde que a A. anda a treinar para o concerto de logo à noite (aqui não temos acesso ao YouTube, peço desde já desculpa se as imagens que acompanham o som forem muito más ou pirosas):
Hoje adormeci. E por isso tive de apanhar um comboio diferente do meu. Fico contente quando isto acontece, porque assim posso ver pessoas novas, o meu passatempo preferido – podia fazê-lo dias inteiros. Hoje fiz uma amiga nova, a Mimi, que tem 9 anos. “Podes escrever Mimi”, disse-me ela, “não é o meu nome de verdade, ninguém vai perceber que sou eu”. Conhecemo-nos no Regional. Ela entrou logo em Tomar e vinha a ler o livro “O Falso Super-Herói”, ao lado da mãe, que dormia de boca aberta e óculos de sol tortos. Eu só entrei mais à frente. Não sei qual de nós meteu conversa primeiro. Explicou-me que o livro era “da Vila Moleza, já ouviste falar? Toda a gente que tem miúdos na família conhece isto”. Que poder gostavas de ter tu?, perguntei eu. “Queria ser invisível, mas que as pessoas pensassem que eu estava no lugar que eu queria – imagina que a minha mãe me manda fazer os trabalhos e eu quero ir brincar. Percebes o que te digo?”, explicou-me logo seguido de um: “Não te rias”, quase chateada. Eu? Respondi-lhe, gostava de olhar para as pessoas e conseguir perceber o que elas sentem. “Não percebi muito bem”. Então, imagina: não fazes as coisas de maneira diferente se percebes que a tua mãe está contente contigo ou se está chateada? Não escolhes coisas diferentes? E na escola, não é bom saberes quando alguém gosta ou não de ti para fazeres coisas sem magoar ninguém? Era bom perceber isso, para fazer as coisas sem dores de cabeça. “Tens mesmo razão, afinal acho que também queria esse”. Sabes Mimi, continuei eu, eu tenho um blog, uma espécie de diário no computador ( - Eu sei o que é isso, temos um na escola!), e ultimamente as pessoas preferem perceber o que se passa na minha cabeça pelo que escrevo lá, em vez de falarem comigo – dizem-me que precisam de o ler para me perceber a mim. “Não é justo, assim também devias ter um blog deles todos”. Vocês agora percebem tudo. Tens toda a razão Mimi, era isso que queria explicar-te - é injusto, mas ela interrompeu-me, “se eu sei o teu nome de verdade, também me podes chamar pelo meu, o Mimi é só para o teu diário”. E depois não falámos mais de coisas sérias.
Eu deixei-a experimentar os meus óculos de sol (- são ao contrário!), ela deixou-me ver um bocadinho do livro e arranjámos alguém para alargar a nossa conversa para um triângulo: um estudante de medicina. E a Mimi foi muito rápida de raciocínio, olhou para as imagens dos apontamentos dele, onde um coração a preto e branco ora estava aberto ora fechado, e disse: “acho que vou acordar a minha mãe, sabes que tenho uma coisa no coração e só estou no comboio para ir ao médico, parece-me que percebes disto (ele explicou-nos como funcionavam as veias e as coisas da imagem), podias ver já o que se passa”. A senhora-do-comboio avisou-nos que já estávamos a chegar ao Oriente e eu preparei-me para sair. “Olha, tenho outra consulta no dia 3, podes vir no comboio também?”, e eu não pude deixar de me rir e de lhe dar um abracinho. Saí a pensar como são estranhas estas coisas. Conhecemos pessoas, conhecemos outros mundos, outras coisas, entramos neles e depois percebemos que talvez não voltemos lá nunca, talvez nunca mais lhes toquemos, nunca mais tenhamos permissão para lá entrar, para fazer parte. Já não lhe consegui dizer isto: queria ter o poder de voltar a algumas coisas sempre que me apetecesse. Não tive muito tempo para ficar a ver a Mimi dizer-me adeus à janela enquanto a mãe a puxava para baixo, talvez a ralhar por ter os sapatos no banco. Corri escadas abaixo, porque a senhora-do-comboio já avisava que a composição procedente de Alverca com destino a Mira Sintra - Meleças estava a entrar na linha número não sei o quê e já chegava de perder tantos comboios num dia ainda tão pequenino.
Encontrei o Sr. J. ao almoço, no refeitório. Depois de dois beijinhos, lá lhe disse que a nota saiu. Tive 19 Sr. J., e ele abraçou-me com tanta força que os meus pés saíram do chão. “Ai m’nha m’nina, eu não lhe disse nada, mas já sabia que daí tinha de vir uma coisa assim”. E depois fui eu que o abracei, porque também estou contente. É só um teste de protocolo, que me roubou uns dias de férias e me deu umas três horas ininterruptas de escrita, mas sabe bem que o mundo nos lembre de vez em quando que ainda não estamos burros de todo e que ainda moramos por aqui.
Lá fora:
"I'm just a little girl lost in the moment
I'm so scared but I don't show it
I can't figure it out
It's bringing me down I know"
- 2 banhos de espuma – um deles com direito a sesta e iPod nos ouvidos. Fazemos figuras muito estranhas quando estamos sozinhos em casa.
- 1 queda – contrariando todas as expectativas e previsões baseadas em estatísticas, ainda só havia registo de uma queda minha cá em casa. Tinha sido na casa-de-banho, daquelas à filme: escorreguei e fiquei com a cabeça no tapete. Desta vez inaugurei outra divisão, a sala. Estava a tentar levantar-me do sofá e pisei o tabuleiro com pizza que estava aos meus pés. As minhas quedas são sempre em câmara lenta, saio à minha avó T., por isso tenho tempo para tudo: consegui evitar a quina do móvel e só a nódoa negra do joelho prova que caí. Ou talvez esta nódoa ainda seja da semana passada, quando caí nas escadas do Alentejo e distribuí as pernas, os braços e a cabeça por vários degraus.
- 2 pacotes de esparguete – em várias versões, carbonara (de momento,o favorito cá de casa), com atum, com tomate, com parmesão.
- 1 tinteiro de tinta preta – permitiu imprimir todo o material de estudo, que enche, mais ou menos, dois dossiers dos grandes.
- 1 saída de casa - para ir comprar pão e apanhar ar. Já estava na caixa para pagar, com um pacote de bolachas de chocolate na mão, quando olhei para o lado e vi uma senhora tão forte, tão forte, que me fez sentir mal e voltar para trás: bolachas na prateleira, nos braços duas embalagens de essencial de manga e de pêssego e uma papaia.
- 1 quase atropelamento – quem me conhece, sabe a minha obsessão com o lixo, reciclagem e coisas parecidas. O Tuto atirava coisas para o chão só para me ver correr atrás delas, a minha mãe foi obrigada a parar o carro porque a vi atirar uma casca de banana pelo vidro. Lá ia eu, a caminho do Intermarché, com um pacotinho já vazio de bolachas de chocolate na mão (o último que restava!), quando ele voa das minhas mãos para a estrada. Corri atrás dele, sem olhar para os dois lados. Levei uma apitadela – daquelas acompanhadas de “és cega ou quê?”, e apanhei um grande susto, mas salvei um pacotinho de plástico do abandono. Depois, deixei-o no ecoponto. Todos merecemos outra oportunidade.
- 1 par de Fly – usei calçado de Verão! E roupa de Verão!
- 1,5l água/dia – ando uma esponja, nunca pensei conseguir tal feito.
- 22 metros – a minha melhor marca na nova mascote cá de casa, uma bicicleta que não nos leva a lado nenhum. Provavelmente andei mais uns metros, mas como estava a tentar andar e estudar ao mesmo tempo, com os apontamentos na mão, ela não registou os meus batimentos cardíacos e começou a piscar por todos os lados sem que eu me tivesse apercebido.
- 42 – músicas que acrescentei ao meu iPod e que não posso mostrar a ninguém, correndo o risco de levar à destruição da credibilidade que consegui em 25 anos.
- +/- 100 – número de vezes que o C. disse ‘vamos ao México’ ou ‘vamos a França’.
- número indefinido – vezes que fui apanhada sem estar a estudar.
- 10 – número de porquinhos que a Felícia deitou ao mundo – o Felício foi pai! Faleceu um, restam 9. [foto enviada pela mana, porque eu estive em casa – a estudar]
Tirei o dia de férias para estudar. O segundo exame é já na segunda-feira e o protocolo teima em não me entrar na cabeça. O plano era simples e parecia fácil: acordar, estudar todo o dia com pequenas pausas para comer, e só parar para voltar à cama. E, mais uma vez, percebi porque não gosto de fazer planos: simplesmente não os cumpro. São duas da tarde e já tomei um banho de espuma, vi Anatomia de Grey e Irmãos e Irmãs, fui a pé ao ecoponto e comprar pão, dancei entre divisões com o volume do rádio no máximo, experimentei roupa nova, lavei os sapatos que o Inverno teimou em cobrir de bolor, naveguei no facebook, espreguicei-me no sofá, actualizei o iPod, mudei o puff para a varanda com vista para a Lezíria e sentei-me nele com os apontamentos no colo, mas estudar, nada. O meu cérebro devia concentrar-se em grandes questões, como saber quando deve o anfitrião ceder ou não o lugar de honra, porque não se senta a esposa ao lado do marido, ou porque deve o convidado ocupar lugar de destaque apesar de não estar no artigo 7º da lei 40/2006. Mas não, anda longe. Quando o pensamento e a vontade não se cruzam, é difícil obrigar o corpo a fazer o que quer que seja. Vou cozinhar. E depois comer. É o meu plano a curto prazo. Pode ser que daqui a pouco, sem dar por isso, só porque não cumpro planos, esteja a estudar.
Maldivas - Olhuveli, Junho 2009
Já dei/deixei o meu contributo ao mundo. Em http://bibescolas.ccems.pt/file.php/1/ESML/html_pagina/html_pagina/p_jornalismo.html.
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