Sou uma pessoa pessimista. Por natureza, também, e muito condicionada pelos meus dias. Não podem levar isto a mal numa pessoa que a primeira coisa que faz quando chega ao trabalho é a revista de imprensa. Não consigo ficar indiferente à quantidade de más notícias que leio por dia, por mês, por ano, nem consigo contrabalançá-las com as poucas boas que vão aparecendo. É normal estar a viver uma qualquer situação, ou simplesmente a pensar, e a tentar descrevê-la na minha cabeça como uma notícia. Defeito profissional. O título faz sentido? Lembra-me qualquer coisa que li? Então há probabilidade de acontecer. Sou a pessoa que numa situação completamente normal acha que vai tudo descambar. Um pneu furado? Atropelamento certo. Viajar numa carrinha de caixa aberta e na caixa? Queda certa. Uma pescaria no mar? Afogamento certo. E poderia continuar assim o dia todo. Mas, para meu bem e de todas as pessoas que me rodeiam, isto nem sempre é assim. E foi num destes dias, em que, sei lá porquê, estava imbuída de um otimismo fora do comum, que fui apanhada numa conversa, entre amigas, onde reclamavam deste ano que está a terminar. Que 2012 não teve nada de especial, que não as marcou, que só querem que termine rápido. E eu a dizer-lhes que não. Deixem lá os dias passar devagar, deixem lá aproveitar cada bocadinho, deixem lá viver um dia de cada vez. 2012 não nos marcou? Para mim, de forma muito resumida, é sinal de que não perdi ninguém importante, não me ‘roubaram’ mais ninguém. Tive de contar os trocos, pensar mais no futuro, mudar planos, apanhar grandes desilusões, reagir a grandes mudanças. Mas, no que toca às minhas pessoas, àquelas que são realmente importantes, essas continuam comigo, como sempre, como é costume e normal. É aqui que se encaixa outra das minhas teorias, que me acompanha a par do pessimismo, normal é bom. Normal é tão, tão bom. Por isso, este é o meu desejo para os amigos: normalidade. Espero que tenham um Natal normal e um 2013 normal, rodeado das vossas pessoas normais. E que o vosso normal seja sempre acima de Feliz. Um desejo que traz, por arrasto, uma missão: cabe, a cada um de nós, fazer por multiplicar esses momentos. Oiço dizer que são estes bocadinhos, os normais, com as nossas pessoas, a única coisa que levamos deste mundo – que, pelos vistos, não desistiu de nós e vai continuar a aturar-nos, o normal.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico (isto é que não é normal, mas tem de ser)
Conheci-o como conheci tantas outras pessoas por aqui, sem saber bem como. Começa-se com um sorriso, um bom dia, e depois já não passamos sem dois dedos de conversa. Conheci-o no trabalho, e se tantas coisas nos separavam, havia uma forte a unir-nos, a terra. O meu Alentejo ficava a poucos minutos do dele, e era tema de conversa tantas vezes. Isso e os meus ralhetes, pelo tanto que fumava. Todos os dias, antes das 09:30, trazia os jornais para que pudéssemos fazer a revista de imprensa. Se tivéssemos cartas para mandar ou encomendas para levantar não havia problema, que a volta fazia-se por lá. E à sexta-feira, quando entrava com o meu nome na ponta dos lábios, adivinhava-lhe já os planos: era ida certa à terra. Chegámos a encontrar-nos por lá, mesmo sem fazermos por isso. Era dia de ano novo, e chovia tanto. Levei a avó a conhecer uma prima nova e reparei num senhor de guarda-chuva na passadeira, sem que ninguém o deixasse passar, ali em frente à minha antiga escola. Reconheci-lhe o passo, era o senhor V., e só os apitos dos carros de trás não nos deixaram desejar festas felizes com mais vagar. Outras vezes encontrámo-nos no comboio, entre festas – era dia de greve, a bilheteira estava fechada, e o revisor não teve tempo de chegar até nós para comprarmos bilhete. Não me lembro da falta de uma palavra, de um gesto, de uma atenção, para comigo. E ainda que possa ter achado que no trabalho muitas coisas poderiam ser diferentes, quem sou eu para julgar alguém que, provavelmente, só se adaptou àquilo que foi colhendo ao longo dos tempos? Conversámos pela última vez numa sexta-feira. Ia para a terra da sua Maria, seguiam-se as férias, e seria tempo da apanha da azeitona. Não voltei a vê-lo. Estranhava já a sua longa ausência quando a fiz notar a um dos motoristas, mais próximos do senhor V.. Que não estava bem, quando estranhou a velocidade a que perdeu peso foi ao médico e os exames mostraram o que mais temiam, um tumor, nem sei bem onde, nem isso importa, que todos são maus. Tinha sido internado no IPO nesse mesmo fim de semana. Pensei em visitá-lo, meti nota no telemóvel, sem saber se isso seria possível, um plano como tantos outros, cheio de boas intenções. Não houve tempo – bastou um fim de semana sem que estivesse de serviço e sem consultar o email para que o sr. com nome de cidade se apagasse, e todas as cerimónias passassem ao meu lado. E depois chorei, claro que sim. Como não chorar por alguém com quem partilhamos muito mais tempo, muitas mais conversas, do que, tantas vezes, com a nossa família e amigos? Pergunto-me se chegará o dia em que deixarei de pensar que ele entrará mais uma vez na nossa sala sempre que batem à porta para entregar os jornais. Haverá dia em que faça a revista de imprensa sem que deixe o Público mais de lado porque era o jornal que o sr. V. levava para ler ao almoço ou sem tentar adivinhar qual das notícias ia ele comentar nesse momento? Na nossa última conversa falámos da crise, do senhor primeiro ministro, dos cortes, de tantas coisas más que vinham por aí e nos iam mudar a vida. E depois, sem que nos tivessem avisado, chegaram outras coisas más, e levaram a vida, e tudo aquilo deixou de preocupar, de fazer sentido. Oxalá o sr. V. também tivesse ficado sem subsídio de férias, também sofresse os cortes já em janeiro, mas continuasse a trazer-nos todos os dias os jornais, para logo de seguida nos ouvir a ralhar por ter acabado de fumar mais um cigarro. Era bom.
*Não gosto do acordo ortográfico, mas estou cansada de resistir em alguns sítios quando em quase 80% do meu dia últil tenho de o usar. Ainda estou a aprender a 'escrever', mas acredito que com o tempo isto vai ao sítio. Este é o primeiro post desta nova fase.
Escrever no B’lota é uma coisa que me dá mesmo muito prazer, ainda que não tenha muito tempo e já não esteja tantas vezes quanto gostaria na terrinha. As entrevistas levam-me um par de horas, o difícil é conseguir estar lá. Chovia mesmo, mesmo muito no dia em que fui fazer a última. Atravessei a ponte, depois de sair do trabalho, e cheguei ao meu Alentejo com o vidro um bocadinho descido – que ninguém saiba disto, mas, como não sobe nem desce no botão, o Z. arranjou uma forma de o prender e, quando descai, basta puxá-lo com as mãos. Perfeito para ladrões. O meu carro não tem andado com muita sorte. Primeiro foi a junta da cabeça que rachou, depois foi o vidro do lado do condutor que deixou de funcionar e agora partiram-lhe o espelho também do lado do condutor (tenho um lá colado, que aumenta tudo). Mas o meu carro é o melhor do mundo, e juntos vamos a todo o lado. Estacionei debaixo de um sobreiro, perto do portão do sr. Luís E., e vi que tinha uma faixa molhada nas calças. Da exacta medida do espaço que o vidro desceu. Estava a tentar puxá-lo, à chuva, quando parou um senhor perto de mim a perguntar se precisava de ajuda. Tive noção de que tinha chegado à minha terra nesse exacto momento. Foi uma entrevista boa como todas as outras. De segredos, de desabafos, de gargalhadas. E de lágrimas. Que começaram a cair já no final, quando o sr. Luís E. pegou no acordeão e começou a tocar o vira de La., que dancei com o meu rancho em tantos palcos, tantas vezes tocado por aquelas mesmas mãos. Depois ainda houve tempo para ver os avós e jantar com os pais. Depressa, que o Z. esqueceu-se da chave de casa logo nesse dia. O pai ajudou-me a prender, uma vez mais, o vidro, mas, uns cinco minutos depois de partir, começou a baixar. Tentei puxá-lo do lado de dentro mas só piorei tudo – acabou por descer todo, com um grande barulho. Não parei no meio do nada para o puxar por medo, e assim fui eu, da minha terra à minha casa, com o vidro completamente aberto. Uma hora e pouco de viagem com o vento na cara, o ar condicionado no máximo para aquecer o possível, uns salpicos de água para refrescar e a música no máximo. Há muito tempo que não me lembrava do que era ir sozinha ao meu Alentejo. Quer dizer, tive companhia – o melhor carro do mundo. Com ou sem vidro. E resultou nisto:
Basta pegar num instrumento, qualquer um, para começar a procurar as notas. São conhecidos os dotes para tocar acordeão, mas diz ser capaz de fazer música até num raio de uma bicicleta. Luís E. C. nasceu a 6 de Setembro de 1932, nos Foros da Palhota, e cedo se dedicou à música. Devia ter uns 4 ou 5 anos quando aprendeu a tocar, sozinho, num harmónio comprado pelo irmão. Este não conseguiu aprender, mas também não deixava ninguém mexer nele, e foi às escondidas que lhe ganhou o gosto. Nessa altura não havia condições para aprender música como há agora, e quem queria tinha de aprender por si. Deixou a escola no 3º ano e foi ajudar os pais, E. C. e M. C., a guardar porcos. Foi aí que ganhou um gosto que ainda hoje tem, o de fazer pequenos pífaros, que o ajudavam a passar o tempo e não o deixavam ficar longe da música muito tempo. Foi depois para os Montes Frades, arrancar moitas, mas acabou por se desentender com um rapaz que o acusou de lhe roubar uma navalha. A discussão levou-o a procurar trabalho no Vale da Lama, no arroz, onde ficou por 12 anos. Fazia de tudo um pouco, semear e cuidar até estar criado, mexer no trator e até apanhar cortiça. Conheceu a esposa, Cu., no trabalho. Era filha do patrão para onde começou depois a fazer mondas de arroz, em Alcoentre. A sociedade unia o sogro e outro senhor da terra, e levava as pessoas dali até onde fossem precisas durante o tempo necessário, não distinguiam dias da semana e fins-de-semana. Não foi, logo ao início, um namoro abençoado. Escreveu-lhe uma carta onde lhe pedia em namoro e ela aceitou, mas ouviu ralhar do pai, que conhecia a sua fama de namoradeiro. Mas foi à Cu.que disse ‘sim’, depois de um namoro de cinco anos, a 1 de Novembro de 1958. Comprou a primeira concertina a um homem que lá apareceu no trabalho e lhe disse “tem jeito, não perca tempo”. Foi pagando aos poucos com aquilo que ia ganhando. Fazia bailes um bocadinho por todo o lado, o primeiro foi na Carregoceira, e chegava a ganhar 250$ por actuação. Corridinhos e valsas, alturas houve em que tocava dia e noite. Começou a tocar também em ranchos, o primeiro foi o de Lavre. O padre Flausino ia buscá-lo a casa, num carro onde chovia lá dentro, e levava-o para os ensaios. Tocou nos ranchos da Glória, da Azervadinha, do Bairro da Areia, da Fajarda, do Rebocho, de Vendas Novas, da Erra, de Foros de Vale Figueira, de Santana do Mato, e, claro, no da terra, onde esteve quase sempre. Chegou a tocar em quatro ranchos ao mesmo tempo e vezes houve em que se juntaram todos em palco – mudava o rancho, o tocador era o mesmo. Foi no regresso de um ensaio, de Vendas Novas, que apanhou um grande susto. Despistou-se na motorizada, caiu para fora da estrada, e aí esteve inconsciente até que uma carrinha de cortiça viu o sangue e o encontrou. Ainda tem as marcas. Trabalhou como servente, mas as doenças não ajudaram, por três vezes teve de ser operado aos olhos. Esteve quatro anos a fazer aquilo que aparecia, até que decidiu vender cautelas, em 62. Primeiro andava por vários sítios, mas depois acabou por se fixar na zona de Coruche, gostou daquilo. Chegou a usar o boné com estrelas, tantas quantos os prémios que tinha dado. Por seis vezes vendeu a sorte grande, o tão desejado 1º prémio da lotaria. Se todos lhe tivessem pago, teria terminado o ofício muito melhor, mas muitos aproveitaram-se da sua boa vontade e foram deixando o nome, até hoje, na lista das dívidas. Quando a filha nasceu era o que andava a fazer, a vender jogo, e por lá teve de ficar. Só a pôde conhecer no dia seguinte, a roda andava nesse dia, e já não podia ir a Lisboa devolver o que tinha comprado. Foi ela que o obrigou a parar de vender, numa altura em que a mãe adoeceu, há cerca de três anos. Não tivesse sido assim e teria ficado muito pior, reconhece agora. A filha, Ma., chegou quando a mulher tinha 39 anos, depois de muito repouso e dieta, porque até aí não tinham conseguido. Às vezes, quando estão os dois adoentados, ela chega a levar-lhes comida, de Évora, de propósito. É uma boa filha, e têm pena de a começar a maçar tão cedo, mas, afinal, foi ela que chegou mais tarde. Numa das idas a Coruche apanhou outro grande susto. Nesse dia resolveu deixar a motorizada em casa, para não correr o risco de ter um acidente, mas o destino trocou-lhe as voltas. Mesmo estando a regressar à aldeia de carro com as professoras Maria Irene e Maria Prates, acabou por ter um e partir as duas rótulas dos joelhos. Nunca pensou chegar aos 80 anos, confessa, com todas aventuras que teve e partidas que o coração também lhe pregou. Mas chegou. Agora, gosta de cuidar da horta, de fazer e tocar pífaros, de tocar concertina e outros instrumentos no rancho. Gostava de ter aprendido música com um mestre, porque sempre tocou sem ter noção de tudo. Agora há muitos professores, mas antigamente não era assim. Ainda aprendeu por correspondência, e diz ter valido a pena. Não conseguiu passar a paixão ao neto, Fi., mas nem assim deixa de o ajudar nos sonhos dele – se prefere tocar bateria, arranja-lhe uns paus e uns alguidares virados ao contrário. Uma paixão que há-de durar para sempre e que não consegue ter de lado muito tempo. A concertina está sempre ali ao lado, faz parte dele, do Luis E.. Ainda não lhe toca e já os seus dedos vão tamborilando. E depois, quando a agarra, é aquilo que todos conhecemos tão bem. São as músicas com as quais crescemos que nos invadem, tocadas pelas mãos do homem que nos fez conhecê-las também.
Percebi agora que não deixei este por aqui:
Foi no passado dia 3 de Junho que soprou 88 velas, mas continua a ser conhecida como a menina El. Coelha. Nasceu nas Co., na casa onde morava o Zé Maltesinho, em 1924, filha de pai e mãe cortiçadenses, S. Coelho e M. E. Barroso. Diz que era uma criança má, irrequieta, que não parava. E são muitas as histórias de que se lembra para o provar. Como aquela em que a avisaram mais do que uma vez para não mexer nos alfinetes e ela resolveu fugir com eles para um buraco no meio da lenha. As horas passaram e ninguém sabia da El. – gritaram, correram, viram poços, mas dela nem sinal. Tinha os alfinetes, tudo o resto podia esperar. Foi o padrinho, grande amigo, que viu o seu gorro vermelho escondido, e a livrou de umas palmadas, dessa vez e em tantas outras. Negociava madeira nas feiras e trazia-lhe sempre um boneco de recordação, mas tinham de lho esconder, porque era estragadona. Explicavam-lhe que era a cegonha que os levava, e passou a detestá-las. A elas e ao senhor que andava a vender agulhas e linhas pela aldeia, e que a avó lhe jurara levar as meninas que se portavam mal em caixotes. Bastava ouvi-lo lá fora para não sair de casa. Lembra os tempos de folia, na escola, com saudade, a mesma que sente dos ensinamentos da professora Bá., irmã do Deusdado, que a acompanhou até ao final da 4ª classe. Depois das aulas veio a costura, que aprendeu com a vizinha Domingas. Era dispensada uma vez por mês para ajudar na casa da professora, que lhe deixava as coisas que precisavam das suas mãos num saco branco: passajava, cosia botões, fazia tudo o que era preciso. Guarda ainda, da juventude, a amizade da Cla. e da Maria D.. Era juntas que davam o passeio de domingo pela aldeia, que viam os pretendentes passar à janela, que faziam bailes improvisados, ao som da concertina do Deusdado, no quintal da Ma.. Começou a namorar aos 19 anos e casou aos 21, também com um homem da terra, J.M. da Silva. Aproveitou uma ida dela à janela, em casa da professora, num domingo de Páscoa, para a pedir em namoro. Ficava por lá de vez em quando, para lhe fazer companhia, porque o marido dela dava aulas em La.. Deixou a costura, que já tinha muito por fazer em casa - em seis anos teve quatro filhos, a Cu., a M. Si., o Zé e o M. J., e costurava para eles. Casou na aldeia porque o marido não quis ir a La., e o almoço, feito pela tia El., reuniu apenas os mais próximos. Na casa onde vive há 45 anos ainda estão os móveis que o marido fez, o chão que ele assentou, os barrotes que inventou para o tecto. Era serrador de profissão, trabalhador da serração da terra. Com o marido veio também o cunhado, que acabou por ficar em casa deles mesmo depois da morte do marido, há 8 anos, e que por ali montou uma sapataria. Por ali ficou até falecer, há 3 anos, pouco depois de partir uma perna.
É uma pessoa informada. Comenta a política e os assuntos do dia com um conhecimento raro de encontrar numa pessoa com a sua idade, e tem opinião para tudo. Defende a continuação da freguesia onde nasceu, em detrimento das vizinhas, porque até tem industria e dá emprego a tanta gente. Justifica-se com as notícias que vê, com os livros que leu. Os netos, o N. P., o Dr. Z. L. foram-lhe emprestando livros, que a ajudaram a conhecer muitos sítios, e até o Sr. Santana, da Bibliomóvel, lhe trazia já alguns de parte. Agora também teve de deixar a leitura, que os braços já não ajudam, desde que partiu um há seis anos, depois de alimentar as galinhas. Mas não foi há muito tempo que leu “Equador”, “Rio das Flores” ou o “Código da Vinci”, e até gosta de os ver depois adaptados à televisão, que os mostra mesmo como os imaginou. Já não tem força nas pernas, que a doença linfática foi-lha tirando aos poucos, mas usa a cadeira de rodas para ir até à rua, ao peal, quando o bom tempo permite, com a filha e as vizinhas, ou para dar uma voltinha maior. Queria uma como a do Estanque, mas só arranjou uma das mais ruins. Enquanto pôde correu tudo – conhece Portugal de uma ponta a outra, em excursões que fazia com o marido. Lembra-se de cada sítio com pormenor, de cada história com certeza, de cada detalhe com lucidez. Poderia escrever um livro com todas estas memórias. Vibra com histórias e gentes de outros países, e conta ao detalhe as viagens que os netos fizeram, que viveram por ela. No frigorífico mantém alinhada a colecção dos ímanes que lhe trouxeram de outras paragens, Barcelona, Croácia, Madeira. Lamenta não conhecer este arquipélago, mas fala como se já lá tivesse estado. A idade tem-lhe tirado algumas das coisas de que mais gosta, o picô, os sacos de retalhos, mas ainda a deixa conversar. Que venha o tempo bom, o sol, o calor da noite, que venham muitas noites mais, de vizinhos, de amigos, de conversa, de peal. É ruim, a cadeira, mas que seja. Enquanto as quatro rodas funcionarem, e houver vontade para empurrar, há-de haver sempre mais uma conversa para ter. Mais um passeio para dar. Mais uma história para contar.
Em dias assim, de apertos, resta-me* animar com as palavras de quem não conheço. Dei-lhe apenas uma resposta muito pequenina e simples, entre tantas outras. Penso eu. Às vezes, mesmo sem notarmos, em pequenas escolhas, temos a vida dos outros nas nossas mãos. Fazemos também o papel de Deus. Interpretamos as urgências à nossa medida, tantas vezes sem a verdadeira noção daquilo que se passa. Vendo as coisas assim, talvez tenha já sido má com tanta gente. Mas hoje, ao ler isto, hoje sabe-me bem saber que também está nas minhas mãos fazer alguém feliz.
“Não tenho palavras para agradecer a atenção e colaboração, resta-me apenas aplaudir o empenho, e a capacidade de resposta atempadamente. O meu muito obrigado, tenham a certeza que um dia eu serei testemunho de que existem pessoas bondosas, capacitadas e qualificadas, motivo pelo qual sinto orgulho dessa equipa que de outro lado está a fazer um excelente trabalho.
Boa noite, continuação de uma boa semana e muita saúde e felicidades na vida,
X”
*Mentira. Também houve coisas boas: piquenique na relva com as amigas ao almoço, acompanhar a mana à primeira entrevista pós-curso e saber que posso sempre contar com o Z..
Sei que, na minha vida profissional, com altos e baixos, com experiências melhores e outras piores, as coisas, mais do que resultado de uma luta minha, têm-me acontecido, têm-me aparecido. Saía de um sítio para, logo depois, começar noutro, sem estar muito tempo parada. E, ainda assim, tentei sempre fazer mais que uma coisa ao mesmo tempo. Estou aqui, neste sítio que ainda chamo novo, já há quase cinco anos, e cada vez mais penso que não será por muito mais tempo. Não que alguém o tenha dito, mas será um passo natural. Não sendo funcionária pública, o patrão é o mesmo, e será muito mais fácil cortar por aqui. Sei que não terei problemas em procurar trabalho em qualquer sítio - no primeiro Verão em que estive no banco preparava-me para me dedicar à apanha do tomate, mas sinto-me triste. É um aperto que começa como um pontinho no peito, e depois quase sufoca. Como se a vontade, os sonhos, os desejos que me levaram a fazer todo este percurso não sirvam para nada afinal. Como se o esforço, o estudo, as notas, a dedicação, ..., fossem completamente desprovidos de sentido. Como se nunca acertássemos no caminho, ou não existisse um caminho para nós sequer. É o sofrimento por antecipação, a tristeza pela falta de horizontes. E a solidariedade por quem ainda está, ou já está, numa fase bem pior. Boa sorte, José. Para ti, para todos, para mim também.
Notícia publicada hoje no Jornal Público
Foi na casa onde é hoje a loja da Fi. que nasceu, a 28 de Maio de 1923, Fi. Si., o segundo filho mais velho dos oito que tiveram os seus pais. Foi o princípio de uma vida que “dava para escrever um romance”. Gostou da escola, onde andou até à 4ª classe, ali era só “meninice, nada de velhice”. Ainda perdeu um ano, não porque se portava mal, apenas porque calhou mal. Como prenda pelo final da aprendizagem recebeu um cavalo e uma charrua para lavrar a terra. Foi apenas o começo da sua dedicação aos trabalhos agrícolas, que o acompanharam até à reforma. Casou a 12 de Março de 1949, em Lavre, com Ant. Gal., que conheceu ainda na escola. O namoro começou mais tarde, na monda, entre uma e outra “catrapiscadela”. Tiveram duas filhas, A. M. e M. O., que já faleceu, três netos, N., Al. e A., e dois bisnetos, M. e Fi.. Depois de trabalhar por conta dos pais esteve 10 anos na Casa Bragança, daí seguiu para a zona da Messejana, no Baixo Alentejo, tendo depois regressado à primeira Casa. Começou o trabalho por conta própria na Pita Mariça, onde esteve 4 anos. Foi uma seara “muito mal calhada”, que deu prejuízo. Passou depois pela Herdade Bem Calado, pela Quinta de Sousa, pela Pato, e ainda parou em Campo Maior, onde fazia searas de arroz e tomate. Quando chegou o 25 de Abril foi despedido, e estreou-se numa nova área, a construção civil, com o Ant. Si.. Cinco anos depois voltou à agricultura, em Elvas, como encarregado agrícola. Ficou por lá dez anos, com a esposa e o neto N., que viveu com os avós desde os 6 aos 28 anos, altura em que casou. Só depois regressou de vez às Cor., onde continuou a trabalhar por conta própria e a dedicar-se à sua horta. As doenças foram-lhe passando ao lado até aos 83 anos, altura em que resolveram aparecer todas. Primeiro foi um rim que quis parar e o obrigou a ficar oito dias no hospital, depois teve de ser operado à próstata e mais tarde voltou a entrar numa sala de operações, por causa das cataratas. A 5 de Novembro de 2011 uma queda da cama deixou-o com uma perna partida e levou-o a mais uma operação e a um mês no hospital. Pouco depois deu entrada numa Unidade em Mora para fazer fisioterapia durante três meses. Foi neste período que a esposa faleceu, vítima de doença de que padecia há já dez anos. A fisioterapia fazia bem ao corpo e à alma – fez amigos, jogou cartas pelos 20 anos que não tinha jogado, meteram-no a cozinhar e fazer actividades que não se imaginava a fazer, como mexer no computador. No diário que foi fazendo com as suas descobertas em frente a um ecrã de dedos no teclado conta que era o mais velho e o melhor, não deixava nada por fazer, não dizia não a nada. No poema que as animadoras do espaço lhe fizeram na despedida descrevem-no como o mais bem-disposto, e confessam que terão saudades de o ver por lá. Voltou em Março à sua casa, sozinho, “infelizmente”. Conta com a ajuda da filha, “extraordinária”, para ter a casa em ordem, e ocupa o seu tempo entre os jogos de cartas na Associação de Reformados e os livros, que os netos lhe vão trazendo e que também vai buscar à Biblioteca da aldeia. Gosta muito de ler José Rodrigues dos Santos, que não é muito dado a políticas, ao contrário de José Saramago, que não gosta muito por isso mesmo. Costuma ler umas quatro ou cinco horas por dia, e quando apanha o jornal não o larga enquanto não o tiver lido de uma ponta à outra. Sempre gostou de caçar, e foi muito o combustível que gastou atrás dos pombos. Dias houve em que chegou a apanhar mais de 50. Um dos seus grandes sonhos foi cumprido há pouco tempo, pelo neto, queria também ganhar asas. Fez o seu baptismo de voo em Évora, e só teve pena de não ter sobrevoado a sua terra, mas o piloto disse-lhe que o bilhete não dava para isso. Queria ter saltado de paraquedas logo nesse dia, mas não o fez porque a filha não deixou. Tem medo por causa da perna, que sabe ter de manter esticada no momento da aterragem e que não pode voltar a partir ou “lá vai o Fi. para o caixote”, mas faz contas de lá voltar para cumprir mais um sonho. Gostava também de conhecer a Madeira ou os Açores, mas a vida não está para luxos, e já não tem idade para ir sozinho. Quer ainda aprender a mexer bem no computador, e já pediu ajuda aos netos para isso. É mais um passo para acompanhar o crescimento da M., que ainda “é um botãozinho de rosa à espera de abrir”, e o Fi., “inteligente como o pai mas que precisa de campo para arrebitar”. Os planos para hoje já estão traçados, passar pelo café para ler o jornal, jogar às cartas com os amigos, e ler “A Guerra de África”, que já vai a meio. Amanhã talvez faça o mesmo, enquanto espera “o que está para vir”.
Em Março, a notícia de que iria estar três meses sozinha em casa deixou-me mais triste do que eu poderia alguma vez imaginar. Fiz planos, tantos planos, para sobrepor àqueles que tinha já planeado para a casa onde estávamos a morar apenas desde Janeiro. Uma casa nova, num prédio velho, tão minha quanto nenhuma outra tinha sido. Tudo tão ao meu jeito, tão perfeita, tão nossa. Acabei por não estar sozinha. Mais triste, com o pensamento mais longe, mas nunca sozinha. Os amigos, a família, foram chegando, um a um, às vezes muitos ao mesmo tempo, semana após semana. Tudo ajudou o tempo a passar. Os jantares com a madrinha, a semana com a mana, outra com a afilhada, as mensagens da T., da V., da prima Mina, a companhia diária da A., os telefonemas dos pais e das avós a toda a hora, o saber que o Z. voltaria, em três meses, àquela casa, tão nossa, aos nossos planos a dois. Não passaram sem doer, mas acabaram por passar. E o Z. voltou e voltámos aos nossos dias e dei por mim a pensar que os dias passam a uma velocidade maior do que eu gostaria. Pensei aquilo que penso tantas vezes quando quero muito que chegue uma coisa, “sem pressa, L., daqui a pouco vais estar lá com saudades deste dia, aproveita”.
Podia apontar uma data de defeitos à casa, a mim, ao Z., a nós, mas são também eles que nos tornam, a nós e à nossa casa, naquilo de que eu gosto. Podia falar da banheira mal posta, do silicone a sair, da porta velha, dos móveis com buracos ou grandes de mais, das vizinhas de baixo que se enganam e tocam à nossa campainha às 05:00 da manhã, mas tudo isso faz parte da nossa casa. Podia falar das nossas discussões, desentendimentos, momentos de apatia. Mas tudo isso faz parte de nós, e termina sempre num abraço apertado com um beijo demorado. Preciso desses defeitos, todos os dias, nestes que passam a correr, e que terminam no sofá da nossa casa, com a minha cabeça no ombro que mais gosto.
E os dias passaram, e as tão desejadas férias chegaram. Uma semaninha apenas, primeiro, para ver, finalmente, Barcelona e para as festas da terrinha. E foi tudo tão bom. Conhecer coisas, depois estar com os meus e com tudo aquilo a que um dia se resumiu a minha vida. Foi no domingo à noite, quando abri a porta e senti o cheiro da nossa casa, o nosso cheiro, que percebi, uma vez mais, que a minha mãe tem sempre razão. O nosso coração é sempre dos nossos, dos que nos amam e fizeram crescer, mas um dia muda-se de malas e bagagens para a nossa casa. E a minha é ali. Naquele prédio velho, naquela casa nova, no Z.. A minha casa é ali quando lá estamos juntos, a minha casa somos nós.
E agora que venham mais duas semanas de férias. Que venha a Curia e o Alentejo do Z.. A vontade é grande, ainda que tenha de confessar que já estou com saudades dela, da nossa casa.
Na segunda-feira houve festa aqui no estaminé onde trabalho. E, entre todas as outras tarefas que nos couberam, a mim e às minhas colegas de departamento, fiquei também responsável por registar o momento. Tirar fotografias é uma coisa de que gosto mesmo, e, mais do que apanhar os momentos da praxe – a chegada, os discursos, a plateia, gosto mesmo é de apanhar as pessoas desprevenidas. Tirei mais de 200, e mesmo assim acabei por deixar algumas pessoas de fora. Os pedidos de envio começaram a chegar de todos os lados e tentei responder a todos. Hoje, quando me cruzei com uma das pessoas a quem enviei, ela estava a dar-me os parabéns, que estavam muito giras, quando fomos interrompidos por um colega que, apesar de ser novo por aqui, já me viu umas dezenas de vezes. “Ah, foi a menina que nos tirou as fotos? Nem a reconheci. Quanta elegância naquele dia!”. O que um rímel e um lápis no olho não fazem… Elogios à parte, a grande questão é: venho assim tão mal arranjada nos outros dias…?
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