Quarta-feira, 3 de Junho de 2015

.A queda

Era dia 1 de maio e estávamos tão felizes. Tínhamos quatro dias de férias pela frente no Alentejo do pai. E estava a ser tão bom. Estavam todos na tosquia das ovelhas, e tu também. Fizeste-lhes festas, andaste em cima delas, tentavas chamá-las para perto de ti. Pelo meio fazias festas nos cães, ias dizer olá aos porcos e corrias atrás das galinhas. Lembro-me de estar a adormecer-te no quarto, com o meu nariz no teu cabelo, e de me rir sozinha por só sentir aquele cheiro típico de borrego. Estavas tão feliz. E tão suja. Era final do dia, tínhamos já acabado o petisco com os tosquiadores, e havia festa na aldeia. O pai ainda não sabia se queria ou não ir, o cansaço por pegar nas ovelhas era muito, mas era altura de tomares banho. Fui para o quarto arranjar as coisas e ficaste na cozinha com toda a gente. Depois quiseste ir ter comigo e o pai foi lá levar-te. “Olhas por ela?”, “Olho, sim”. Agarrei em tudo e fui para a cozinha, onde o pai já começava a preparar a água para o banho. Vinhas comigo, mas resolveste parar na sala. E eu vi. Vimos todos. Ficaste perto da tábua de passar a ferro, a ver a porta e a conversar. Esta é uma imagem muito nítida na minha cabeça, mesmo um mês depois – olhar para ti, sorrir por te ver a conversar, por te ver tão suja, tão feliz. Virei-me para meter as coisas em cima da mesa, e no instante a seguir só ouvi o teu grito, o teu choro, e não consigo não chorar e não sentir um aperto profundo quando me lembro desse grito. As escadas. Não tinha pensado nelas desde que estávamos ali (como não?). Ninguém pensou nelas – o pai não viu a porta aberta quando te foi deixar comigo, eu não a vi quando entrei nem quando saí do quarto contigo, ninguém se lembrou de a fechar. Corremos todos, tanto. A avó e o pai chegaram primeiro a ti. Estavas sentada lá em baixo, virada para o primeiro degrau, que agarravas com as tuas mãozinhas. O sangue corria pelo nariz abaixo e choravas. Já estavas no colo da avó quando eu me deixei cair de joelhos no chão. As lágrimas corriam mesmo sem pestanejar e só perguntava o que é que tínhamos feito à nossa vida, como é que tínhamos deixado aquilo acontecer. Naquele instante, era a pior mãe do mundo. Impotente, incapaz, cheia de incertezas e medos, … . Começaste a vomitar (tinhas acabado de jantar) e a avó levou-te para a cozinha. Eu ainda estava de pijama e vesti-me num minuto, o pai também. Chegámos à rua e já não choravas. A avó meteu-te no chão e estavas a andar, mas sabia lá eu se seria apenas por ter acabado de acontecer. Agachei-me ali mesmo na terra, mãos na cabeça, e lágrimas a cair. Tu viste-me e vieste a chorar até mim, enquanto me abraçavas. Eu pedia-te desculpa. Por tudo. Voámos para Beja. Foram os minutos mais difíceis da minha vida. Quatro piscas, velocidade suficiente, o pai cheio de força (nunca mais direi mal dos Chicos-Espertos que nos passam em traços contínuos – ninguém sabe o desespero que pode ir lá dentro). Cantei para ti, fiz-te fazer todas as coisas que já sabias: como vai a tua vidinha, como faz o gato, o cavalo, o cão, ... . E cantava, mas todas as músicas eram tristes, tão tristes, misturadas com as minhas lágrimas e o meu desespero enquanto lutava para que não adormecesses – e tu tão cansada, e num carro, e eu a tirar-te a chupeta e a por logo de volta porque não suportava ver-te chorar (mais tarde a enfermeira disse-me que devia ter-te deixado adormecer, seria melhor do que entrares em desespero). Chegámos ao hospital, sem casacos, sem mantas, só com a mochila das fraldas que nos lembrámos de apanhar antes de sair de casa, sem ouvir os conselhos do padrinho para te levar um pijama lavado. Deram-nos uma pulseira amarela – afinal tu até já estavas bem disposta, a correr todo o hospital, a mandar beijinhos a quem passava e a dizer olá a toda a gente. Eu não conseguia parar de chorar – e se ficasses com alguma coisa para sempre? E se deixasses de ser a bebé que conhecíamos? E se tivéssemos ficado sem ti? E se? Liguei à madrinha e desabei. Não disse aos avós, que estavam longe, e sabia que viriam a qualquer hora – mas não podiam entrar ali, nem eu sabia dizer-lhes ainda como estavas, não quis preocupá-los nem que fizessem uma viagem assim. Foste vista por alguns médicos – não tinhas marcas em nenhuma parte do corpo a não ser na cabeça. Um degrau marcado no nariz, um pontinho ferido nessa zona, e a testa raspada. Não te vimos cair e só sabíamos que tinhas batido com a cabeça. Fizeram-te um raio-x (que difícil) e esperámos pelo veredito ali no corredor da urgência, enquanto mamavas e sossegavas no meu colo ou enquanto corrias para todas as portas abertas. Um padre passou por ali e meteu-se contigo. Deu-nos um santinho, que guardei com carinho na tua pasta de documentos. Uma enfermeira deu-te um brinquedo do McDonald e um médico ralhou com ela porque era só para maiores de 3 anos, mas tu gostaste tanto. E depois vieram falar connosco: se morássemos perto poderíamos ir para casa, estando atentos; como ainda estávamos a uma hora de Beja íamos passar a noite ali, por precaução. Fiquei eu. O pai, cansado, arrastou-se até casa. Ficámos nós. Emprestaram-nos uma roupa para ti – a tua cheirava a borregos, a sangue, a vómito, a dor. As meias eram enormes, passaste a noite a perdê-las - agradecemos tudo. A cama de grades era grande, tão grande. E tu choravas - de dor, por falta do pai, por falta do nosso espaço, por estarmos num sítio desconhecido (não sei). A enfermeira disse-me para me deitar ao teu lado, e assim fiz. E ali fiquei, numa posição inventada, a dar-te mama, até adormeceres ao meu lado. Passei depois para a poltrona, e passadas umas horas a enfermeira lá me explicou que dava para reclinar as costas e ficar deitada. Durante toda a noite ouvi a música da Ovibeja e pensei nestas coisas estranhas da vida. Quanta gente a sofrer naquele hospital (no mundo), tanta gente a divertir-se ali ao lado. Fui rezando, fui chorando, fui tomando conta de ti. Ainda desabafei com algumas pessoas, mas o telefone ficou rapidamente sem bateria (nunca pensamos nas emergências). Tapei-te vezes sem conta, toquei-te vezes em conta. Despertaste às 5:00, mamaste, voltei a aninhar-te em mim e voltaste a adormecer até às 07:00. A essa hora começaste a correr toda a pediatria, visitaste os bebés que estavam nas incubadoras, foste ao quarto de brincar meter tudo na boca, entraste na sala das enfermeiras e nos quartos dos outros meninos doentes. Andava eu a correr atrás de ti quando vieram saber de nós e dar-nos alta – ouvi o médico dizer entredentes “não para, como é que não havia de cair”. Doía-me tudo – o corpo, o coração, a cabeça. O pai e a avó vieram buscar-nos e lembro-me de como me soube bem o pastel de nata que me trouxeram. Chegámos a casa, tomámos banho e fomos dormir, os 3, muito agarradinhos. Eu não consegui. Tinha a cabeça tão cheia, o coração tão pesado e não queria perder-te de vista. Os outros avós vinham a caminho, sem saber de nada - vinham só para passar as festas dos avós paternos connosco. Contei-lhes mal pararam o carro, e foi um choque muito grande. Tudo o que nós sentimos em todas aquelas horas estavam eles a sentir em minutos – a queda, o susto, o medo, a perda, o choro, o saber que estavas bem. À tarde, foste com a avó até ao sítio onde tosquiaram as ovelhas e começaste a apontar para a parede e a querer ir para lá. A avó não sabia o que se passava, mas nós percebemos: lembravas-te do ninho cheio de passarinhos esfomeados que ali tinhas visto na véspera. Nem te consigo explicar como isso nos deixou felizes - como se fosse um sinal que estavas mesmo bem. Quando olharam para as escadas de onde caíste todos disseram o mesmo: Deus ajudou-te. Não gosto de pensar assim – e então todas aquelas crianças, e aquelas mães, e aqueles pais, que não tiveram a sorte de ter mais uma oportunidade, assim, bem? A culpa também é de Deus? Prefiro acreditar num Deus que não decide assim sobre a vida de uma criança, porque perante tamanho sofrimento salvaria todas. Também não sei se lhe posso chamar sorte. Foi uma dádiva, uma nova oportunidade, uma nova hipótese de fazer tudo bem. E também não gosto que me digam que toda a gente apanha sustos, que acontece a toda a gente. Não quero saber disso – preferia que não acontecesse, nem a nós, nem a ninguém. Preferia que aprendêssemos as lições sem precisar de passar pelas dificuldades. És bebé, começaste agora a andar, estás agora a descobrir o mundo, e contas com a nossa ajuda para isso. Não sabes que as escadas não são um lugar para um bebé, não sabes onde te leva o escuro, não sabes que aquela porta ficou aberta por engano – mas nós sabemos, e somos teus pais, e estamos aqui para isso. E falhámos, não estávamos lá. Ainda não recuperei do susto. O pai diz que um dia vais ter uma má nota e eu ainda vou culpar esta queda. Não sei. Sei que o meu coração ainda está apertado, e não descansa um segundo. Penso em todos os cenários – e se fosse numa piscina e não te ouvíssemos chorar? Foi em segundos, mas vidas perdem-se nesses instantes. Comecei este texto muitas vezes, e parava a meio por ser tão doloroso - mas precisava de continuar, por mim e para alertar nem que seja só mais uma pessoa. Foi uma experiência que me mudou, não necessariamente para melhor. Estou mais assustada, preocupada, prevenida, não sei. Nada disso impede que volte a acontecer um acidente, só ajuda (ou não, eu sei lá) e isso adusta-me. A imprevisibilidade da vida assusta-me. És minha e não consigo controlar tudo o que te acontece. Que medo. Desde que caíste já uma mãe viu um filho morrer às mãos de um amigo, já outra mãe perdeu um filho numa piscina, já outra viu o filho ser agredido na internet, já outras tantas mães terão perdido filhos ou tiveram que vê-los a sofrer sem que isso tivesse passado nas notícias. Sei destas. E sofro. Com elas, por elas, pelos filhos delas, por ti. Tivemos sorte, pequena Aurora, tanta sorte. E eu não me canso de agradecer por ela, e por ti, todos os dias. Obrigada, foi a palavra que eu mais repeti, aos médicos, aos enfermeiros, ao hospital, à família que fez por estar presente, aos amigos que fizeram por saber coisas, a Deus, à sorte, à vida. Juro-te que estou a tentar, com todas as minhas forças, não voltar a falhar, a falhar-te. Desculpa-me, desculpa-nos. E obrigada ao que quer que te tenha feito descer aqueles degraus da maneira menos dolorosa possível, e a todos os que tornaram possível estar agora assim - com o meu nariz no teu cabelo, já sem cheirar a borrego, com mais um mês pela frente para ver-te ser feliz.

L. às 19:07
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1 comentário:
De mina jesus a 3 de Junho de 2015 às 21:38
Lindo mas triste por tantos sentimentos de culpa.

Tens que ser mais positiva, beijinho.

Contudo como eu e compreendo.

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