Segunda-feira, 23 de Maio de 2011

.No céu

Desde que o meu Z. fez o curso de pára-quedismo militar que isto era assunto recorrente. “Um dia vamos fazer o civil”, “Aquilo é espectacular”, “Lá em cima é que é”. Seis saltos fizeram-no esquecer três semanas de cangurus e rezas árabes. E, no meio deste entusiasmo todo, dei por mim com um vale para fazer um curso de pára-quedismo civil. Depois de muita hesitação, marcámos para este fim-de-semana. Assim que nos cruzámos com o Instrutor, um pára-quedista militar já reformado, perguntou-me se eu ia só assistir. É difícil traduzir em palavras o ar desconfiado, desanimado que ele fez quando lhe disse que ia participar. Deixou-me um bocadinho desanimada também. Éramos um grupo de nove, e eu era a única rapariga. Ia ser a minha 'família', como explicou o instrutor. O primeiro dia foi de teoria. Procedimentos depois de sair do avião – contagem, verificar se a calote abriu, puxar os manobradores umas vezes para verificar se está tudo bem, ver se temos vizinhos, verificar onde estamos e começar a caminhada para a zona de aterragem, sempre à esquerda da pista, passar no ponto inicial (onde temos de estar aos 1000 pés), aos 500 pés virar 90º, aos 300 mais 90º e aterrar, sem olhar para o chão mas em frente. Estudámos incidentes simples e graves, como libertar a asa principal e puxar o de reserva, qual o trajecto a fazer desde que saltamos até aterrar e como sair do avião. Aprendemos até como aterrar na água, em telhados, em cima de árvores ou carros, contra cabos eléctricos e o que fazer caso ficássemos presos ao avião. Às vezes ficava assustada, outras mais calma, mas desistir é que nem pensar. A teoria terminou às 20:30, o que nos obrigou a jantar ali por perto, em São Mansos, no restaurante do sr. Xico, uma das coisas boas do fim-de-semana – quero lá voltar para provar aquela ementa toda. No domingo chegámos cedo, depois de um pequeno-almoço em família, a tempo de treinar as saídas da barreira ao lado do estacionamento. O caminho entre V. N. S. Bento e Évora foi feito a tirar notas, enquanto recordávamos as palavras da véspera e víamos dezenas de coelhinhos bebés a correr ao lado da estrada. Quando encontrei o senhor Mo., o instrutor, confessei-lhe que tinha passado a noite a saltar, “Oh amiga, eu não vos disse para descansarem?”. Só quando ele percebeu que tinha sido em sonhos é que deu para rir e aliviar um bocadinho. E foi assim que chegou a altura de saltar pela primeira vez. Resolvi não me preocupar, nem ficar ansiosa, logo se veria. O senhor Ma., ajudante do instrutor, andava sempre de roda de mim, a tentar apertar-me as protecções das pernas, grandes demais para alguém pequeno como eu. Era a quarta a saltar, e o Z. deu-me a mão o tempo todo. O pânico, ao nível do coração, chegou quando abriram a porta, ainda antes da minha vez. O vento, de todos os lados, a querer sugar-nos, deixou-me sem reacção. Depois veio o pânico maior: sair, lá em baixo, tinha sido fácil, não me tinha lembrado que lá em cima haveria o vento. Sair, com os meus 50 quilos mais os 15 às costas do pára-quedas, com todo aquele vento a empurrar-me, foi mais difícil do que imaginava. Pôr o pé esquerdo no patim, agarrar a barra com uma mão, depois colocar o outro pé e a outra mão foi a minha grande dificuldade. Não era a altura, não era o atirar-me, era o vento a querer levar-me. “Quando saltares, olha para mim”, dizia o largador, e eu tentei, mas não me lembro de nada. É por isso que se chama saltar e não largar, pensei eu depois em terra, enquanto pensava no que tinha feito mal – larguei as mãos e não saltei com os pés, e o vento levou-me logo, em muitas voltas acrobáticas pelo ar (que triste foi ver-me no vídeo), até sentir o pára-quedas a puxar-me nem sabia bem para onde. Quando dei por mim, a calote estava aberta, o instrutor dava ordens pelo rádio, tentei apanhar os manobradores, e senti o sangue na boca. Um cordão, o pára-quedas a abrir, o meu braço com sangue na camisola, não sei, qualquer coisa me tinha cortado o lábio por dentro. Mais descansada – não era o meu cérebro a esvair-se em sangue, tentei aproveitar, enquanto o meu coração se esforçava para caber no sítio que lhe foi reservado. Foi aí que percebi que não tinha feito nenhum dos procedimentos. Estava ali, a voar. Estava a 1200 metros do chão, via Évora, via o meu Alentejo, via o planeta, como dizia o senhor Ma.. Levei as mãos ao chão na aterragem, mas estava mais ou menos feliz. O meu primeiro salto estava feito, faltavam só três. Aterrei nas ervas, ao lado da pista dos aviões, enquanto me esforçava por ignorar os bichos que teimavam em passar à minha volta. Estava em terra, apesar daquela má partida. Fui recebida com palmas por algumas pessoas que estavam a assistir. Corajosa, diziam elas, e eu a tremer por dentro. No segundo salto o pânico instalou-se mais cedo – não queria mais cambalhotas daquelas, não queria sentir o vento a invadir-me o corpo e a alma. Não podem tirar o patim e saltamos de frente?, pensava eu. Não, não podiam, e os meus medos confirmaram-se. A mão que me encorajou no primeiro salto estava lá em baixo, a ver-me. O salto foi ainda pior que o primeiro, ou talvez fosse a minha desilusão a tomar conta de mim. Depois de já estarmos no ar, de porta aberta, tivemos de voltar para trás por falta de gasolina, o que só aumentou a ansiedade. Deixei-me ir outra vez, em acrobacias desnecessárias, a sentir o puxão vindo não sei de que sítio outra vez. Estava tão irritada comigo própria que me esqueci de aproveitar o salto, as orientações da C. pelo rádio deixavam-me baralhada, por ser a terceira a saltar tinha ficado longe de tudo, e, se não estivesse ali com tanta gente, teria chorado com toda a certeza. Foi assim que o Z. me encontrou, sentada nas ervas, ainda sem apanhar a asa, e a fazer força para as lágrimas não saírem. Senti que aquela não era mesmo a minha onda, que tinha medo, que queria ir para casa, que afinal a coragem não era o meu forte. E ainda faltavam dois saltos. Só de pensar no terceiro tremia, e o Z. ficou ali, a animar-me, e eu a responder mal. Só pensava que não era capaz. Quando chegou a vez de me equipar para o terceiro salto, fiz tudo sem pensar muito. Tinha de ser, não ia desistir a meio. A parte que mais me assustava não durava mais que um minuto, e tinha de pensar que o tempo passa rapidamente. A C., que percebeu o meu pânico calado, ensinou-me um truque, também por ser baixinha como eu: “sai com o tronco baixo, para enfrentares o vento, e não ponhas os pés todos no patim, põe só as pontas”. O largador, a quem eu tentei explicar que era muito lenta a chegar ao patim, disse-me apenas “comigo não há lentidão, sais e depressa, que és a segunda e há mais gente para saltar atrás de ti”. Talvez por isso, por pensar que tinha de ser e tinha, e depressa que ele não estava para ter paciência comigo, nem pensei muito. Saí como a C. me ensinou, e lá me lembrei de saltar em vez de largar as mãos. E foi aí que percebi que estava a cair a direito. Nada de cambalhotas, saltos acrobáticos, puxões vindos não sei de onde. Olhei em volta, sem pára-quedas ainda, com o mundo por baixo de mim. E disse asneiras, tantas quanto me lembrei, mais do que pensei saber, enquanto intervalava com “L.S., tu conseguiste saltar bem”. E gritava, gritava muito. O vento estava mais forte, a asa mais instável, mas consegui aproveitar. Vi a casa com piscina, lembrei o que fazer caso caísse lá, e segui a instruções do senhor Mo., que ainda teve tempo de brincar comigo e dar-me ‘música de discoteca’. Eles esqueciam-se que os meus colegas de grupo, a minha ‘família’, pesava quase o dobro de mim, e mandavam-me travar na mesma altura – como não tinha muita força para puxar os manobradores de uma só vez, acabava sempre por aterrar com alguma velocidade. Desenvolvi o meu método: amortecia com os pés direitos, e depois deixava-me cair com jeitinho. Foi assim que me deixei ficar, como se estivesse na praia, enquanto o Z. corria para mim, o senhor Mo. ralhava pelo rádio, “rapariga, mas porque é que caíste assim, estavas tão bem, ainda te magoas”, e a minha ‘família’ de fim-de-semana me imaginava lesionada. E eu sentada, a rir, e a responder-lhe sem que ele me ouvisse. Eu saltei bem, eu saltei bem, era só o que me saía, enquanto sentia o lábio a latejar, e uma das pernas a criar uma grande nódoa negra. O Z. fez a festa comigo e ajudou-me, uma vez mais, a apanhar a asa. "Onde é que arranjaste um namorado assim? Também queremos um", brincavam os rapazes comigo. Quando cheguei perto deles, quase saltei para cima do senhor Mo. – e ele, pára-quedista da velha guarda, lá desarmou e abraçou-me também “ai rapariga, eu não te disse que o segundo é que era o do cagaço?”. Achei que era melhor agradecer também ao largador, o último, menos simpático à primeira, mais directo, e ele disse-me que, dos cinco que seguiam nesse avião, o meu salto foi o melhor. E isso deixou-me feliz. Não sei como vai ser o quarto salto, que teve de ficar para outro dia. Não posso dizer que fiquei apaixonada, que quero muitos mais saltos na minha vida, que vai ser uma prioridade. Mas sei que valeu a pena. Que fiz parte de mais uma coisa do Z., enquanto as namoradas do resto da ‘família’ estavam lá em baixo, a tirar fotografias. Que me superei em tantos aspectos. Que fui capaz. Que enfrentei medos. Que saltei, sozinha. Que pude sentir-me orgulhosa de mim. Lá em cima, enquanto caía a direito, na posição certa, com tempo para os procedimentos certos pela primeira vez, e me lembrava de todas as asneiras que me saíam quase sem pensar, só pensava uma coisa. “Posso ir parar ao inferno, mas isto ninguém me tira, agora, neste momento, estou no céu”.

 

 

Hoje vim a pé para o trabalho, porque a bateria do meu popó resolveu ir à vida. Vim por trás, uma vez mais, a corta-mato. Quando o senhor dos autocarros me viu sair de lá fez um ar de espanto, e só depois de um bocadinho me conseguiu dizer: “a menina mora aqui perto?”. Lá lhe expliquei. “Mas isto é tão abandonado, e uma menina assim sozinha aqui, não tem medo?”. Disse-lhe que me basta meter os phones nos ouvidos para me esquecer do mundo, enquanto canto e danço. “E sou corajosa”, queria acrescentar, “ontem até saltei de pára-quedas”! Mas guardei tudo para mim e fiquei-me pelo sorriso.

L. às 15:20
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10 comentários:
De mina Jesus a 25 de Maio de 2011 às 23:11
QUE GRANDE MULHER.parabéns


MAS POR DETRÁS DE UMA GRANDE MULHER ESTÁ UM GRANDE HOMEM OU VICE VERSA
bEIJINHO254c52z
De L. a 27 de Maio de 2011 às 13:38
Obrigada. :) *

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