No outro dia deixei-me dormir. Acordei mais tarde, sem tempo para lavar o cabelo nem para escolher a roupa. Restou-me prendê-lo num elástico e vestir a primeira coisa que tirei da gaveta. O resto do dia não correu muito bem. Sentia-me mal, sem força, feia. Correr para apanhar os transportes enquanto me tentava equilibrar em cima de uns Fly, mal ter tempo para almoçar, aturar jornalistas, reuniões com o director, ler notícias más, chegar tarde a casa.
Obriguei-me a sair ao almoço. Comprei endurecedor de unhas, creme esfoliante e máscara para a cara. Quando cheguei a casa, enchi a banheira com mais espuma do que água, meti máscara no cabelo e na cara, e limei as unhas naquele banho que durou o tempo necessário para me fazer recuperar a auto-estima.
Nesse dia, caiu um avião. Acompanhei todas as notícias. As histórias por detrás da história. As que nos tocam mais do que as imagens em que vemos um avião a cair. As que nos mostraram que estavam pessoas ali. Pensei nos 5 voos que tinha feito na viagem aos Açores, nas 9 que o C. fez para Timor, e em como éramos uns sortudos, uns "sobreviventes", nas palavras de alguém.
À noite, fui com o C. a casa da D. Maria. É a senhora que passa a nossa roupa a ferro. Não a conhecia. Tem ar de avó. Fiquei sem perceber se aquilo que estávamos a fazer era uma forma de ajudá-la ou só de cansá-la mais. Tinha uns olhos azuis daqueles que mostram tudo quando querem fazê-lo e que se fecham a cadeado com um simples gesto. Mostrou-me o ferro novo. Abraçou-me. Com muita força. Desejou-nos sorte e depois começou a chorar. Apontou para uma foto, ao lado, onde se via o rosto de um casal abraçado que se beijava. "É a minha filha e o meu genro: ele morreu primeiro, ela algum tempo depois, deixaram-me um netinho, venha vê-lo". Dei um passo na direcção daquela porta aberta, disse olá com o maior sorriso do mundo e tentei mantê-lo quando o vi. Jogava, em frente ao pc, e não olhou para mim. Respondeu a medo, sem desviar os olhos. Nos breves segundos que o meu pé esteve naquele quarto, demorei-me nele. O cabelo muito seco, seco demais. A pele toda queimada. Talvez um acidente, um fogo, não sei. Era um miúdo, 14 anos, no máximo. Voltou a abraçar-me, a D. Maria. Só me saiu "mas, pelo que vejo, tem uma avó cheia de força". Palavras fúteis. Entrei no carro a tremer. Tremi enquanto lhe acenava, até a deixar de ver naquela curva.
À noite, quando me deitei, não consegui deixar de pensar na D. Maria. E de deixar cair umas lágrimas. Eu, fútil mais uma vez, a fazer com que o bem-estar do meu dia dependesse de um cabelo solto, de umas unhas arranjadas, de uma cara sem borbulhas, de uma pele sem celulite. E pessoas reais lá fora. Com coisas a sério. Com tanto azar, tantos acidentes, tantas preocupações reais, a lutarem e a mostrarem o melhor sorriso ainda assim. Fraquinha, fraquinha, senti-me eu. Ao pé dela, da D. Maria.
. .Feliz Natal e um 2019 ch...
. .Hoje
. .2
. .Ela
. .22
. .Dos fins de semana bons ...
. .Adeus, Inderal! [com ima...
. .A queda
. .I'm sixteen going on sev...